Transcrição integral. Título e símbolo Formigarras
Carta a minha mãe sobre o SNS e outras coisas em Portugal
TERESA PIZARRO BELEZA*
10/01/2013 - 00:00
Aqui vai o meu texto para ela:
"Mãe, sabes que agora em
Portugal
mandam uns senhores que estão a dar cabo
do Serviço Nacional de Saúde? E que dizem que é por causa de uma tal de
troika, que agora manda neles? Lembras-te da "Lei Arnaut", que,
segundo ele
mesmo diz, tu redigiste, depois de muito pensares e estudares sobre o
assunto, com a seriedade e o empenho que punhas em tudo o que fazias?
Lembras-te das nossas conversas sobre a necessidade de toda a gente em
Portugal ter acesso a
cuidados de saúde básicos de boa qualidade e de
como
essa possibilidade fizera em poucos anos baixar drasticamente a mortalidade
materna e infantil, flagelos nacionais antigos,
como uma das coisas boas que
se tornaram realidade depois de 1974 e com a restauração da democracia?
Lembras-te de quando eu te dizia que eras tão mais socialista do que
"eles",
os do Partido Socialista, e tu te zangavas porque não era essa a tua imagem
e a tua crença?
E quando eu te dizia que o ministro António Arnaut era maçon e tu não
acreditavas, porque ele era (e é) um homem bom - e para ti a Maçonaria era a
encarnação do Diabo...
Mãe, tu, que te dizias e julgavas convictamente monárquica, católica,
miguelista, jurista cartesiana (isso era o que eu te dizia e que penso que
eras, também), que conhecias a Bíblia e Teilhard de Chardin
como ninguém e
me ensinaste que Deus criara o homem e a mulher à Sua imagem, quando pronunciou o fiat, porque assim se diz no Génesis...
Tu que dizias que o problema dos economistas era que não tinham aprendido
latim... e me tiravas as dúvidas de português e outras coisas, quando me não
mandavas ir ao dicionário,
como
agora eu mando o meu Filho...
Tu que foste o meu "Google", às vezes renitente, quando este ainda
não
existia... Sabes que agora
manda em Portugal gente ignorante e pacóvia,
que
nem se lembra já de
como
se vivia na pobreza e na doença, que julga que o
Estado se deve retirar de tudo, incluindo da Saúde, e confunde a absoluta e
premente necessidade de controlar e conter o imenso desperdício com a ideia
de fechar portas, urgências claramente úteis social e geograficamente...
Sabes que fecharam o Serviço de Urgência e o excelente Serviço de
Cardiologia do Hospital Curry Cabral sem sequer prevenirem ou consultarem o
seu chefe? Onde irão agora todas aquelas pessoas tão claramente pobres,
vulneráveis e humildes que tantas vezes lá encontrei e que não pareciam
capazes de aprenderem outro caminho, outro destino, de encontrarem outros
dedicados e pacientes "ouvidores"?
Sabes que um ministro qualquer disse que o edifício da Maternidade Alfredo
da
Costa não tinha qualquer
interesse urbanístico ou arquitectónico, para
além de condenar ao abate essa unidade de saúde, com limitações já
evidentes, mas que tão importante foi para
tanta gente humilde ter os seus filhos em segurança? Será mesmo que não a poderiam "refundar",
como agora se
diz? Ou quererão construir um condomínio fechado, luxuoso e kitsch, no meio
de uma das minhas, das nossas cidades?
Lembras-te de me ires buscar à MAC quando nasceu o meu Filho e de
como te
contei da imensa dedicação do pessoal médico e de enfermagem e da clara
sobre-representação de parturientes de origem social modesta, imigrantes,
ciganas, ou simplesmente pobres?
Sabes que há muita gente que pensa que a iniciativa privada, incontrolada e
à solta, é que vai salvar
Portugal
da bancarrota, e que ignora o sentido das
palavras solidariedade, justiça, igualdade, compaixão?
Sabes, Mãe, eu lembro-me de ver pessoas que partiram de
Portugal para o
mundo em busca de trabalho e rendimento a viver em "casas" feitas de
bocados
de camioneta, de restos de madeira, de cartão e outros improváveis e etéreos
materiais, emigrantes portugueses que foram parar ao bidonville em St Denis,
nos arredores de Paris, num Inverno em que a temperatura desceu a 20 graus
Celsius abaixo de zero (1970).
Nas "paredes", havia toda a sorte de inscrições contra a guerra
colonial e
contra o regime que então reinava em
Portugal.
O padre Zé, o nosso amigo da Mission Catholique Portugaise que me
acompanhava e me quis mostrar o bairro, proibiu-me de falar português e de
sair do carro enquanto ali passávamos... e aqui em
Portugal
eu vi
tanta
miséria envergonhada, homens de chapéu na mão a pedir emprego, mulheres e
crianças a pedir esmola, apesar de todas as leis e medidas que o Estado Novo
produziu para as esconder,
como
já fizera a Primeira República.
A pobreza e a vadiagem não se eliminam com Mitras e medidas de segurança,
mas com produção e distribuição de riqueza e de justiça social. Com a
promoção da igualdade e da solidariedade,
como
manda a Constituição.
E a Saúde, Mãe, que vão fazer dela? Da saúde dos pobres, dos velhos, das
crianças, dos que não têm nem podem ter seguros de saúde de luxo, porque não
têm dinheiro, porque já não têm idade, ou porque não têm saúde?
E as crianças, Mãe? Vão de novo morrer antes do tempo porque o parto foi
solitário ou mal assistido, porque a saúde materno-infantil passou a ser de
novo um bem reservado a alguns privilegiados, ou porque a "selecção
natural"
voltará a equilibrar a demografia em
Portugal, recolhidas as mulheres a
suas
casas, desempregadas e de novo domesticadas, e perdida de novo a
possibilidade de controlo sobre a sua própria fertilidade?
O planeamento familiar, que tu tão bem explicaste que deveria segundo a lei
seguir a autonomia que o Código Civil reconhece na capacidade natural dos
adolescentes - tu, católica, jurista, supostamente conservadora (assim te
pensavas, às vezes?)...
Sabes que aqui há tempos ouvi uma jurista ignorante dizer em público que só
aos 18 anos os jovens poderiam ir sozinhos a uma consulta de planeamento
familiar, quando atingissem a maioridade, sem autorização de pai ou mãe?
Ai, minha Mãe,
como
a ignorância é perigosa... Será que nos espera um
qualquer Ceausescu ou equivalente, dado o progressivo estrangulamento
político e social a que a necessidade económica e a cegueira política nos
estão levando?
Os traços fascizantes que são visíveis na repressão da liberdade de
expressão e de manifestação, em tudo tão contrários à Constituição da
República, serão só impressão de uns "maníacos de esquerda",
como dizem umas
pessoas que há tão pouco tempo garantiam que essa coisa de esquerda e
direita era coisa do passado?
Mas as crianças são o futuro, Mãe, que será deste país sem elas, sem a sua
saúde e sem a sua educação, sem o seu bem-estar, sem a sua alegria?
Eu lembro-me tão bem dos miúdos descalços e ranhosos nas ruas da minha
infância... e da luta legal, tão recente ainda, quem sabe se perdida, contra
o trabalho clandestino, ilegal e infame das crianças a coserem sapatos em
casa, a faltarem à escola, a ajudarem as famílias, ainda há tão pouco tempo,
ou dos miuditos com carregos e encargos maiores que eles, à semelhança das
mulheres da carqueja a subirem aquela rampa infame que Helder Pacheco, o
poeta-guia do nosso
Porto, tão bem descreve...
"Que quem já é pecador sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais
tanta
dor?!... Porque padecem assim?!..."
Mãe, se agora cá voltasses, ao mundo dos vivos, acho que terias uma
desilusão terrível.
Melhor que não vejas o que estão fazendo do nosso pobre país.
Da tua Filha, com muita saudade,
Maria Teresa
Ericeira, Portugal, Europa, dia 31 de
Dezembro de 2012
* Professora de Direito Penal, directora da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa.
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