Contito
Levantei-me cedo, bastante cedo para os meus hábitos de avó dorminhoca. É assim que os meus netos me chamam, e com alguma razão, pois não gosto nada de madrugar. É uma herança do meu falecido Pedro Francisco que também só se levantava quando não podia deixar de ser. Foi assim desde que casámos. Sempre chegou a horas ao trabalho, mas, nos fins-de-semana, ficávamos de papo cheio. Levantávamo-nos quase sempre depois do meio-dia e, em boa verdade, não era só sono, que aquela santa alma que deus tenha não era de estar acordado na cama. Mal despertava acordavam-se-lhe os apetites…
Começava com o solfejo e com a música e eu entrava na dança... Tudo dançava, muito mexido o mê Pedro Francisco, o meu falecido dançava tudo, um verdadeiro artista. Foi assim durante muitos anos. Não me queixo, eu fazia a minha parte, mas não gosto de falar de mim…
Foram tantos anos a levantarmo-nos tarde que me habituei, mesmo depois de ele se ter ido. Quando se foi já não era novo, é verdade, mas podia ter-me feito companhia mais uns anos, tenho muitas saudades. Éramos um para o outro e mesmo quando as manhãs dos fins-de-semana passaram a ser mais dormidas e menos dançadas, sabia-me bem aquele calorzinho.
Volta para aqui, volta para ali, mas lá nos rebolávamos sempre de encontro à fornalha! Tinha uma pele acetinada, morna no Inverno e no Verão, paciência, escaldava mas eu gostava.
Nunca tomei remédios nem fui muito de igreja, de padres ou sacristia, mas fui sempre rija, milagre não foi, que ele até às vezes me dizia que eu era herege porque comíamos carne na Páscoa. Se calhar aqueles exercícios faziam bem à saúde. Agora sem ele, sem o calor dele, que tinha o mesmo efeito que as vacinas, evitando maleitas, é que vejo que estou velhota. Já tenho de tomar umas pastilhitas piquininas, mas quando me esqueço delas sinto-me fraca, não as posso largar.
Quando vou ver a minha filha é que não me posso mesmo esquecer de as tomar. Não aguentava. É muito tempo de transportes, aos solavancos toda a viagem. Vou daqui na carreira das 6 para evitar aquelas confusões de tanta gente sempre a correr, a entrar e a sair do metro e depois no barco e mais o autocarro. Ontem fiz o mesmo e cheguei às 7 ao Campo Grande e aquilo era só pretos.
Não é bem assim, também vi outros mais claros. Mas eram menos. Pretos é que era uma fartura. De onde é que veio tanto preto?! Pretos por todo o lado na estação do Campo Grande, sim, a do Metro. Muitos vinham do jardim, pretos de todas as idades, embora houvesse mais novos do que velhos. Serão perigosos? Não trago muito dinheiro mas ouve-se tanta coisa…
Havia uns pretos parados e outros correr, alguns encostados a portas, a árvores e até a semáforos. Que é que esta gente estará aqui a fazer? Os que estavam parados deviam estar à espera de alguém. Três pretos que pareciam perdidos vieram perguntar-me onde eram os autocarros. Simpáticos, disseram bom dia quando se me dirigiram e obrigado quando abalaram. Falaram bem, percebe-se tudo, mas têm a língua um pouco entaramelada, vê-se que são de fora. Muito sorridentes, estes pretos. Não tive medo, nem lhes vi cara de malandragem…
Quando cheguei a casa da minha filha é que ela me explicou: Oh mãe, é ali que os apanham. São pessoas que vão para as obras e para as limpezas, para lojas e restaurantes. Vão de carro ou carrinha e também de autocarro, metro e comboio, com pressa em chegar ao destino.
Pretos?! São é mouros de trabalho, gente laboriosa que, ainda é madrugada e já vai a caminho do ganha-pão.
Escrito em Lisboa a 9 de Março de 2008
terça-feira, 12 de agosto de 2008
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