Recomendação Formigarras
Ler toda a entrevista, todos aprendemos
António Sarmento
Entrevista EXPRESSO de 28.Março.2020
MÁSCARA Em nenhum momento António Sarmento tira a máscara. É uma regra de ouro para toda a equipa para evitar quarentenas prejudiciais ao serviço
“O coronavírus está
a assustar mais do que a sida”
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Dirige o serviço de infecciologia do
Hospital de São João, onde se concentra o maior número de infetados pelo
coronavírus do país. Em entrevista exclusiva ao Expresso fala dos dramas de uma
luta diária contra uma pandemia da qual quase tudo se ignora, e da qual
sobressai pelo menos uma certeza: é essencial evitar o pânico
POR VALDEMAR
CRUZ (TEXTO)
E RUI DUARTE SILVA (FOTOGRAFIAS)
Éum homem
tranquilo. Recebe-nos com o rosto coberto por uma máscara. Não a tira em
nenhuma circunstância no interior do Centro Hospitalar Universitário São João,
no Porto, onde dirige o Serviço de Doenças Infecciosas. Antes de lá chegarmos,
chegam instruções precisas para não entrarmos no hospital sem alguém nos vir
buscar. Segue-se o crivo da despistagem e prevenção da doença. Registo de nome
e contacto telefónico. Medição da temperatura corporal. Entrega de uma máscara
e líquido desinfetante. Só depois somos conduzidos para uma sala onde há de
chegar António Sarmento. Está cansado. O tempo encolhe-se por entre os dedos.
Aos 64 anos, revela um profundo saber. Tem atrás de si uma longa carreira
profissional com outros combates poderosos, como aquando da emergência do vírus
da sida. Esta é, porém, a maior crise de saúde pública alguma vez enfrentada
por todos quantos o rodeiam. Tem noção dos perigos. Escuda-se no valor, no
rigor e na coragem de uma vasta equipa de profissionais de saúde que, ali, como
nos mais recônditos locais do país, transformam o SNS na última e grande
fronteira do combate a um inimigo poderoso. Por isso, lamenta e não esconde a
revolta desencadeada pela dolorosa constatação de que, ao longo dos anos, os
Governos europeus têm vindo “a desleixar o SNS”.
Começo com uma pergunta que só na
aparência será pessoal. Quando comuniquei no meu círculo familiar que vinha
entrevistá-lo a si e ainda por cima no Hospital e São João, foram-me
manifestadas as maiores das reservas e receios. Há razão para isso?
Não. Não.
Porque é que usamos agora todos máscaras no hospital e até há pouco tempo não
usávamos? Todas as medidas podem ser escaladas à medida que as coisas vão
mudando. Algo que hoje está certo, daqui a uma semana pode ter de ser
diferente. Andamos todos de máscara porque o meu serviço, doenças infecciosas,
é o epicentro de tudo isto. Está a assegurar a assistência a dezenas, centenas
de doentes. É um serviço que tem de continuar a funcionar. Onde vamos tentar
evitar ao máximo que alguém adoeça. Estamos agora os dois a conversar, e ambos
de máscara. Se daqui a dois dias se apercebesse que eu estava infetado, nenhum
de nós precisava de ir de quarentena. Ou antes, eu nunca precisaria porque era
eu que estava infetado. Teria de ir para casa tratar-me. Se no meu serviço se
soubesse agora que quatro médicos estiveram reunidos durante duas horas com um
médico de outro serviço, e nenhum estava de máscara, e depois viesse a saber-se
que o tal médico já estava infetado, estes quatro médicos do meu serviço iam ter
de ficar de quarentena. Numa altura em que já há falta de recursos, se começam
a espalhar-se as quarentenas, isto colapsa. A máscara que todos usamos no
serviço, o dia todo, sem nunca a tirar, é para nos precavermos de algum
contacto que mais tarde sabemos ter sido com uma pessoa que estava infetada.
Isso obrigar-nos-ia a quarentenas que, com esta proteção, não são necessárias.
Mas podem infetar-se lá fora...
Sim, isso é
lógico. Mas mesmo que se infete lá fora, o problema é o mesmo. Vem trabalhar de
máscara, e quando se aperceber, todos os contactos que teve foram protegidos.
Isso é muito importante para que os hospitais possam trabalhar e para que não
haja falta de recursos. Se no meu serviço usar todos os dias as precauções que
sei que tenho de usar, se estiver sempre protegido, posso ter as relações
familiares normais.
Como é quando chega a casa?
Normal. E
até acredito que, provavelmente, estarei mais protegido do que se andasse por
aí a cruzar-me com pessoas que não fazia ideia que estavam infetadas.
É errado andar de máscara na rua?
Tenho alguma
dificuldade em responder. Se for buscar o que dizia a Organização Mundial da
Saúde (OMS) há uma semana... As coisas evoluem e por isso tenho algum medo, não
é das perguntas. É das respostas. A OMS ainda há uma semana dizia que não havia
prova nenhuma que as pessoas se protegiam mais por andarem de máscara na rua.
Dava-lhes uma falta sensação de segurança. Muitas vezes não lavavam as mãos e
depois mexiam na máscara e a seguir mexiam no olho. Mas há indicações claras
para o uso de máscaras. Se a pessoa estiver com tosse, para proteger os outros.
Se estiver com febre. Aí é obrigatório pôr máscara nesta fase. Se alguém
estiver a contactar com uma pessoa que esteja com tosse, deve estar de máscara.
Se está em determinados contextos, como o hospital, também. Se devem andar
todas de máscara na rua? Pode ter mudado alguma coisa, mas até há uns dias não
havia qualquer evidência dos benefícios e podia fazer com que se esgotasse um
bem que pode ser absolutamente precioso noutras circunstâncias. O mais
importante é a evicção social. Não é isolamento. É ter medidas de mais
distanciamento. Evitar as multidões. Por isso acabaram as missas, as
discotecas.
Em meados de novembro uma pessoa é infetada em Wuhan, na China, por um
animal. Segundo estimativas da OMS, no final de abril podem haver 250 milhões
de pessoas infetadas em todo o mundo. Como é que chegamos aqui, com 23 mil
novos casos/dia na Europa à data em que falamos?
Era evidente
que mais tarde ou mais cedo isto ia acontecer. E também não podíamos fazer
muito para evitar que acontecesse. É um vírus novo, para o qual não há vacina e
com o qual o ser humano nunca contactou. Logo, não tem imunidade natural.
Apanha a humanidade desprevenida. Se a taxa de contagiosidade fosse muito
pequena, as coisas podiam-se conter. Quando essa taxa é maior, não é possível.
É natural. Os vírus, particularmente os respiratórios, têm uma vida, uma
biologia, uma cinética que ainda conhecemos mal. Aparecem quando querem.
Inesperadamente há uma explosão. Propagam-se e depois, ciclicamente e muitas
vezes por motivos que não conhecemos inteiramente, desaparecem. Regridem. Há
todo um mundo microscópico, de vírus, de bactérias, que existe na Terra há
muitos mais anos do que nós, e que tem um conhecimento, uma plasticidade
genética, uma capacidade de adaptação brutal. Muito antes de existirem os
mamíferos, os seres humanos, já os micróbios existiam. Têm um conhecimento
genético do mundo muito grande. Com a globalização, com o constante aumento das
viagens, com o aparecimento no maior centro comercial do mundo, que é a China,
de onde toda a gente sai e para onde toda a gente vai, isto é perfeitamente
possível acontecer.
Porém o segundo foco é em Itália, na Europa...
Sim, o
segundo epicentro é um dos maiores centros turísticos do Mundo, que é o Norte
de Itália. Juntaram-se várias coisas: viagens constantes, a falta de imunidade
da humanidade face a um vírus novo, o eclodir num centro do país mais populoso
do mundo e que irradia para o mundo todo, e depois o segundo epicentro num dos
maiores destinos turístico do mundo.
Estamos a viver uma crise global de saúde pública que se movimenta a uma
velocidade e numa escala nunca presenciada por qualquer geração ainda viva à
face da Terra. É caso para entrarmos em pânico?
Há vírus que
se propagam mais depressa, como o sarampo. Se a covid-19 tivesse a propagação
do vírus do sarampo, a Humanidade estava... Só que a maior parte das pessoas
está vacinada. A Humanidade já conhece o vírus do sarampo há centenas de anos.
O vírus da varicela também se propaga muito mais rapidamente. A covid-19
propaga-se mais do que a gripe. Temos de ter equilíbrio entre duas coisas. Há
uma escala onde num extremo está a inconsciência, que é péssima. E no outro
lado está o pânico, que é péssimo também. Conseguir o meio termo não é fácil. O
pânico não nos protege mais. Pelo contrário, expõe-nos mais, porque se fazem
disparates. Uma sociedade em pânico é uma sociedade que não funciona. Há uma
série de consequências para a vida normal da sociedade que depois impede o
tratamento dos doentes. O pânico é muito mau, a inconsciência é muito má. Nós,
portugueses, temos muitas qualidades e uma delas é que vamos enfrentar bem
isto. O pânico vai diminuir e a consciência vai aumentar.
É decisivo diluir no tempo o número de infetados?
É, porque
mil casos numa semana são muito mais graves do que os mesmos mil casos num mês.
Não há capacidade dos serviços de saúde para dar essa resposta. Se conseguirmos
diluir estes novos casos no tempo, mesmo que depois o número final seja o
mesmo, as consequências são outras. Até porque as outras doenças continuam a
existir. Há outros doentes que continuam a chegar ao hospital. É esse tipo de
medidas que temos de adotar. O terceiro esforço é o da população. É um
comportamento cívico tranquilo, consciente. Depois há um quarto elemento,
representado por si, que está aqui à minha frente. Toda a imprensa pode ter um
papel formativo fantástico. Deixe-me voltar à sua primeira pergunta, que
parecia pessoal, mas não é. Eu, se for agora para casa, estou a falar com a
minha mulher e com os meus filhos com uma distância mais próxima do que aquela
que estou de si, e não estou de máscara. Porquê? Porque tenho a nítida noção de
que estou protegido. Se as pessoas começarem a entrar em pânico, se começar
tudo a ir para casa sem motivo, sublinho, sem motivo... Repare, não podem parar
os transportes, o fornecimento de alimentos, o pessoal que trabalha nos
hospitais. Por isso digo que a imprensa tem um papel muito importante no
sentido de acalmar as pessoas.
Sabemos que numa fase inicial muita gente desvalorizou os perigos deste
vírus. Agora há uma maior consciencialização, mas não há o risco de se cair
noutro extremo, ao ponto de se censurar até uma simples saída para um leve
passeio higiénico?
Deixo as
recomendações de saúde pública para a DGS, porque o meu dia a dia é ocupado por
inteiro — tenho tempo para dormir um bocadinho e pouco mais — com a situação no
hospital. É importante passar a mensagem correta, que se é correta hoje, pode
não o ser daqui a uma semana. E não foi erro. É o conhecimento que vai
evoluindo. Mas aquilo em que se tem insistido imenso é na lavagem das mãos
várias vezes. Isso é insubstituível. As pessoas devem procurar não andar com as
mãos em tudo. É a evicção social. Não é a pessoa isolar-se e ficar
completamente só. Mas é não andar aos beijos, não andar agarrado aos outros,
não andar a cumprimentar. Procurar espaços menos densamente povoados. Não quer
dizer que tenha de estar sozinho para sempre. É senso comum. É saber que a
menos de um metro há risco de contágio. Saber que se há alguém que está com
sintomas respiratórios deve pôr de imediato uma máscara. Geralmente procuro não
andar em casa com os sapatos da rua. Mas isso é uma medida de higiene normal.
Já muito antes disto havia quem tivesse esta atitude. Não está muito nos nossos
hábitos, mas os nórdicos fazem muito isso e agora coloca-se com mais premência.
E o perigo das informações avulsas, às vezes até de origem desconhecida?
É importante
as pessoas não se deixarem influenciar por uma coisa que viram no YouTube, por
algo que viram nas redes sociais, por palpites. Vão ao site da
DGS. E mesmo assim, se não encontrarem o que querem, aproveito para recomendar
o site Public Health England Corona Vírus. Pertence ao SNS
inglês e está muitíssimo bem feito, muito atualizado. Tem base bibliográfica
muito séria. É acessível e útil, quer aos médicos quer aos enfermeiros quer ao
cidadão. É evidente que a Agência Europeia de Controlo da Infeção-ECDC, ou a
Organização Mundial de Saúde, ou nas siglas em inglês WHO, também são muito
fiáveis e é por aí que as pessoas devem ir. Quando consultarem alguma coisa,
cuidado com as redes sociais. Se querem informação consultem aqueles sites porque
são ajudas muito grandes. São informações sérias.
Mesmo se ainda não sabemos muito, quais são os factos cruciais que
particularizam este vírus?
Felizmente a
grande maioria dos casos ocorre sob a forma de síndromas ligeiros ou moderados.
Nas formas mais complexas, que se imagina que serão uns 10%, algumas exigem
cuidados intensivos. Essas são graves mesmo. Mas felizmente a maior parte das
situações são ligeiras ou moderadas. Em segundo lugar, nas crianças a doença é
praticamente sempre muito benigna. Nos casos todos da China, em crianças com
menos de dez anos, não há o registo de uma morte. As crianças são muitíssimo
poupadas.
Há uma explicação?
Provavelmente
porque têm uma imunidade mais saudável. A mortalidade vai aumentando de década
para década. Na primeira não há mortes. Na segunda são muito raras. Entre os 20
e os 30 também são raras. À medida que se vai aumentando de idade, o sistema
imunológico envelhece. Tal como envelhecem os cabelos, a nossa pele. Os casos
mais graves são em pessoas mais idosas, mas particularmente quando essas
pessoas têm as chamadas comorbilidades. Diabetes, hipertensão arterial, doença
pulmonar crónica obstrutiva. Isso não quer dizer que uma pessoa de 40 anos não
possa ter uma doença gravíssima, com cuidados intensivos, como já tivemos Mas é
raríssimo. Há um outro aspeto: aqueles que se complicam e que, repito, são uma
minoria, geralmente não é no início da doença. É ao fim de uma semana, dez dias.
Nos primeiros dias as pessoas andam relativamente bem, depois é que surge a
complicação. Mas, e é importante insistir nisto, na vastíssima maioria dos
casos desta doença corre bem.
Está visto que a covid-19 não é como uma simples gripe...
Não, não é. Tem
muito mais complicações. É uma doença nova, com características clínicas
diferentes. E tem uma gravidade maior do que a gripe. Sem alarmismos, não
podemos meter no mesmo saco. Para já ainda é difícil dar um número seguro, mas
calculo que 90% a 95% dos casos correm bem. É apenas uma ideia, porque só no
fim é que vamos ver. Provavelmente houve imensos casos tão benignos, que não
foram detetados. Se entrassem todos para o bolo, as contas seriam outras.
Também só no fim vamos ver as vítimas que vai provocar. Infelizmente não são
apenas pela doença em si. São porque as outras continuam a existir. Se os
serviços de saúde estiverem completamente sobrecarregados vai haver um pior
tratamento das outras doenças. Vai ser mais difícil, porque os recursos a certa
altura são finitos. No mundo, provavelmente, quando se fizerem as contas,
vai-se perceber que morreram mais pessoas do que habitualmente por pneumonias,
por enfartes do miocárdio, por acidentes vasculares cerebrais, porque está tudo
sobrecarregado com isto. Por isso digo que, se conseguirmos diluir isto no
tempo, sobrecarregando o menos possível os serviços de saúde, é bom, quer para
os doentes com coronavírus quer para os outros doentes.
SERENO O diretor de serviço de infecciologia do
Hospital de São João procura transmitir confiança a todos. Só no exterior
aceita tirar a máscara para a fotografia
Essa questão dos serviços de saúde suscita uma perplexidade. Visto que,
depois da China, os grandes focos são, agora, Itália e Espanha, dois países com
bons sistemas de saúde, mas que vivem um descalabro. Os sistemas de saúde não
estão preparados para uma crise desta dimensão? O que tem de mudar?
Ninguém pode
estar preparado para uma catástrofe. O que caracteriza a catástrofe e uma
desproporção entre o número de vítimas e os recursos necessários. Não era
possível preparar o dia a dia. Imagine que temos, por exemplo, 20 ventiladores
por mil habitantes. São números inventados. Chegam perfeitamente para o dia a
dia. É muito difícil estar a programar o número de camas, o número de
ventiladores, o número de enfermeiros para uma crise em que vai aumentar 50 ou
100 vezes o volume normal. Nenhum sistema de saúde aguenta isto. Economicamente
não é possível. Os recursos são finitos. O que têm é de estar preparados em
termos organizacionais para, se surgir uma coisa destas, quais são os passos a
dar. O que se tem de fazer, o que se tem de produzir. Itália tem belíssimos
hospitais, como Espanha. Mas isso não basta. Tem de haver uma rede de saúde
pública a funcionar bem. Posso dizer que têm belíssimos hospitais, mas os
melhores hospitais do mundo não resolveriam o problema de uma crise com milhões
de pessoas. O que resolve é um sistema de saúde pública que impeça que haja,
num período muito curto, esses milhões de casos.
Decorre daí que se coloca a necessidade de redimensionar o SNS quando
percebemos que a gestão da crise repousa sobre um SNS precário, submetido
ao diktat da racionalização económica, subfinanciado ao longo
de muitos anos...
[Interrompe]
Essa pergunta que me coloca... sei onde quer chegar e tem toda a razão de ser.
As crises dos SNS não são só cá. Estão a ser desinvestidos em muitos sítios.
Nomeadamente na Europa. Estamos a caminhar para um liberalismo e para uma
situação de desvio de interesses para outras coisas. Notamos que o SNS em
Inglaterra está com muitas dificuldades. Até na Alemanha está com
desinvestimentos e com dificuldades. Isto pode ser uma oportunidade para o
futuro. Pode ser que os países pensem em voltarem a preocupar-se com os SNS,
que desleixaram. Os países todos. Não é só Portugal. Acharam que poderiam
resolver a coisa de outra maneira. Nos últimos anos desinteressaram-se um
bocado dos serviços de saúde. Uma das coisas que se terá de se repensar é se
não valerá a pena fazer sacrifícios noutras áreas para ter serviços de saúde
mais robustos, a funcionarem melhor.
É urgente uma solução global?
Sim. Não
pode ser resolvido por cada país individualmente. A Europa tem de saber até
onde vai. Até onde pode investir. O que pode fazer. Se a Europa quer ser uma
União, não pode ser só para o que lhe convém. Se quer ser uma União Europeia,
tem de ter serviços de saúde com qualidade uniforme. Não pode ter serviços de
saúde de primeira na Dinamarca e de segunda em Portugal. Há critérios de qualidade
que têm de ser uniformes. Isso é fundamental. Até porque se for bom num sítio e
mau no outro, um dia há outra crise destas, e as pessoas caem pelo elo mais
fraco. Depois, temos o aumento brutal do preço dos medicamentos, nomeadamente
na área do cancro, que vai fazer tremer qualquer SNS, porque o que se gasta é
brutal. As multinacionais vão ter de refletir na sua política. Se acabam com o
SNS também acabam com a venda dos medicamentos. Têm de pensar nisso em
colaboração com os governos a nível europeu. Tem de ser a Europa toda a dizer
até onde vamos, o que podemos tratar, o que é admissível, o que é excessivo.
Isso também ajudava a resolver o problema de subfinanciamento dos serviços de
saúde. Estão sobrecarregados com preços brutais de medicamentos, que vão
continuar a subir. A Europa tem de aproveitar esta crise para repensar a saúde
europeia como um todo. Temos de ter uma qualidade uniforme. Ou então cada qual
vai para seu lado e não somos União nenhuma.
Como vê o modo como a China atuou, com medidas classificadas muito duras na
criação de cordões sanitários?
Sabemos
pouco sobre o que se passa na China. Também é difícil comparar zonas
geográficas completamente diferentes. Estamos a comparar a Europa com a China,
com latitudes, climas e hábitos completamente diferentes. Imagine que se
tomavam em Itália exatamente as mesmas medidas adotadas na China. Os resultados
podiam não ser os mesmos. Há uma diferença geográfica que num ser vivo, como é
o vírus, às vezes tem muita importância. Há medidas que é possível tomar na
China, e não são possíveis cá. É um regime autocrático, que não tem as
limitações existentes nas nossas democracias. Na Europa implica muito mais uma
adesão voluntária dos cidadãos. Por isso a imprensa é importante. Há uma coisa
que, apesar de tudo, me intriga. Como é que em Wuhan, onde vivem 11 milhões de
pessoas, em cima umas das outras, conseguiram conter o vírus e praticamente
deixar de ter casos.
Intriga-o, no sentido em que desconfia?
Não.
Intriga-me. Não sei. Ter havido na China toda 80 mil casos reportados, acho que
não terão sido só as medidas. Houve mais qualquer coisa. E esse algo mais pode
ter sido o vírus que pode ter mudado o seu comportamento. Por mais eficazes que
sejam aquelas medidas, custa-me a perceber que, no fundo, tenha atingido tão
pouca gente.
Estamos no século XXI e quando julgávamos já dominar tudo, afinal o grande
recurso para o combate ao vírus é um método utilizado na Idade Média...
Tem razão.
Estou de acordo consigo. O fundamental para isto é o comportamento humano e o
comportamento do vírus. Os sistemas de saúde são importantes, mas depois há os
comportamentos humanos e de biologia do vírus que são talvez aquilo que há de
mais significativo. É evidente que há algo de decisivo, que seria conseguir-se
uma vacina. Aí, a intervenção humana seria poderosíssima. Enquanto não se
conseguir uma vacina, voltamos à evicção social, às quarentenas, às mudanças de
hábitos. Há esperança de que o vírus seja sazonal e comece a diminuir com a
época do ano.
É irrealista pensar que a breve prazo possa surgir uma vacina?
Não. Creio
que as coisas estão avançadas. Porém, quando há um medicamento novo, tem de ser
testado. Está a ver o que era dar a milhões de pessoas uma vacina que depois se
vinha a descobrir que tinha um efeito qualquer? Podia fazer mais vítimas do que
o vírus. Tem de se ter esse cuidado, embora hoje existam já sistemas de
simulação mais perfeitos, que aceleram a fase de experimentação humana, que tem
de existir. Isso pode chocar as pessoas, mas tem de haver. São os ensaios
clínicos de fase 1 ou fase 0, que não se podem dispensar em medicamento nenhum.
Demora tempo. Custa-me a crer que a vacina ainda vá a ter influência agora. Mas
pode ser importantíssima se para o ano houver um novo surto. Se isso
acontecesse, por exemplo em janeiro de 2021, provavelmente já daria tempo para
ter muita gente vacinada.
É ainda cedo para perceber se quem foi agora afetado fica imune?
Só lhe posso
responder como infecciologista, porque isso pode estar a ser investigado. Mas é
muitíssimo pouco provável que possa não dar imunidade. É uma regra geral para
todos os vírus que dão infeções agudas. A pessoa ganha imunidade e o vírus
desaparece. Por isso é que nos processos de cura, quando o doente deixa de ter
sintomas, fazemos as análises e elas são negativas. Desapareceu por causa do
nosso sistema imunológico, uma vez que ainda não há terapêuticas comprovadas. O
problema seguinte é: ficou em memória? Em princípio fica uma memória. Se a
pessoa volta a contactar com esse vírus já tem anticorpos que se formam logo e
não tem doença nenhuma. Isso é a regra geral e é no que vamos acreditar. Porque
se não desse imunidade, ia ser muito difícil fazermos uma vacina.
O problema é que nem todas as doenças víricas dão imunidade, como o
comprovam a sida ou a hepatite B...
Naquelas em
que não dá uma imunidade, o vírus continua lá sempre. Não desaparece. Nestas
desaparece. Suponho que não será tudo mau.
Estamos num período de quarentena que durará 15 dias. E depois?
Nestas
coisas tenho imensa dificuldade em responder. É uma doença nova de que não
sabemos nada. Estamos a aprender coisas que não sabíamos nem podíamos saber. Há
coisas que estavam certas há uma semana e uma semana depois já não estão. É
muito difícil dizer o tempo que isto vai demorar. Não só por causa da doença em
si mesma, que pode assumir proporções diferentes, como pela própria vida da
sociedade. Não sabemos até quando é suportável. A saúde pública não é a minha
especialidade, mas sei que as pessoas da área têm sempre uma preocupação muito
grande, que é entre os danos da doença e os danos do desmoronar social. Muitas
vezes num incêndio numa discoteca não morre ninguém queimado e morrem 50
pessoas devido ao pânico. Há quem tenha criticado muito a OMS por ter demorado
muito tempo a declarar a emergência mundial. É preciso pensar muito nisto. Um
desestruturar da economia mundial, se calhar vai matar à fome muita gente. No
fim é muito fácil olhar para trás e dizer como é que as coisas deviam ter sido
feitas. Só que ninguém é adivinho. Podemos precaver-nos em relação àquilo que
se pode prever.
Há uma dimensão de risco que tem de existir para o funcionamento da
sociedade?
É evidente
que se fosse possível fechar toda a gente em casa, a propagação do vírus era
muito mais lenta. Mas a sociedade não pode viver assim. É muito fácil as
quarentenas todas, só que há um limite. Porque as pessoas têm de continuar a
comer. É preciso alguém continuar a trabalhar nos supermercados, alguém que os
abasteça. É preciso continuar a haver os trabalhadores da eletricidade, dos
transportes. A população tem de saber que toda a gente está a dar o seu melhor.
O problema é que não há ninguém infalível perante uma situação que era
desconhecida até agora. Não se pode ter dúvidas de que há gente a fazer um
esforço titânico nesta altura. E não estou a falar só do meu serviço ou do meu
Hospital. Falo dos centros de saúde, dos colegas da saúde pública, dos
enfermeiros, da DGS. Há imensa gente, muito competente, que está a dar tudo o
que sabe e pode pela proteção das pessoas.
A troca de informações dos médicos a nível internacional é decisiva. Está a
acontecer?
Isso é
fundamental e está a acontecer. É indispensável. Até para preconizar medidas
globais. Perceber o que uns estão a fazer e outros não. O que resultou ou não.
A comunicação é fundamental. Os erros ou falta de comunicação estão na base de
todas as desgraças. Quanto mais grave é a crise, mais as pessoas têm de
comunicar umas com as outras. Não de forma alarmista ou sensacionalista. Não
gosto nada daquelas pessoas que se põem a divulgar nas redes sociais uma
hipótese perfeitamente recôndita, que viram não sei onde, e enche logo mais uma
quantidade de pessoas de medo e de pânico.
Na semana passada o jornal francês “Libération” convidou vários escritores
de diferentes partes do mundo a refletirem e a escreverem sobre esta pandemia.
Chamou-me a atenção o texto de uma escritora italiana. Chamava-se “Carta aos
franceses a partir do futuro”. Estão a olhar para lá, para Itália e Espanha,
para recolherem ensinamentos e experiência?
Sim, mas é
ainda tudo ainda demasiado confuso para sabermos o que se passou. Eles próprios
estão de cabeça perdida. É difícil tirarmos indicações clínicas porque ainda
está tudo em ebulição. Para já, mais do que tudo, temos de tentar salvar os
doentes. Ainda não há tempo para grandes estudos. É o que nos acontece a nós.
Estou aqui a conversar consigo, mas o meu dia a dia é de tal ordem intenso, que
gostava de ter uma tarde livre para estar em casa isolado e fazer uma
reatualização do que tem saído. Nem para isso temos tempo. Os italianos não
devem ter tempo para publicar artigos com base científica a dizer o que se
passou.
Esta entrevista esteve agendada para um domingo, no passado dia 15, mas
pediu para cancelar por absoluta falta de condições pessoais e de tempo. Como
tem sido a sua vivência desta crise?
Há sempre
lados positivos. Tenho uma equipa no meu serviço constituída por gente
excecional. São pessoas de uma grande dedicação e persistência. Temos tido
imenso voluntarismo, entusiasmo e coragem. Tomam todas as precauções para se
protegerem, e ainda ninguém foi contagiado. Isso não bastava se não houvesse
uma coordenação. Existe e é excelente. A pessoa do meu serviço que está
encarregada de coordenar isto, a dra. Margarida Tavares, tem feito um trabalho
absolutamente notável. O meu serviço está a dar formação a muitos outros
serviços para ir agregando gente. Não vamos ser capazes, sozinhos, de agregar
tudo. Já temos colegas de outras especialidades, da medicina interna, da
imunoalergologia, da pneumologia, da clínica geral, que vêm ter connosco, vão
treinando, vão formando equipas, que depois vão continuar a dar assistência
autonomamente a estes doentes noutros locais do hospital reservados para isto.
A enfermeira-chefe do serviço tem sido incansável, com competência, serenidade,
o que é muito importante. Depois, e não gostava que isto fosse mal
interpretado, mas tenho de o dizer, temos tido um Conselho de Administração,
com o seu presidente, dr. Fernando Araújo, com uma enorme competência e uma
capacidade de trabalho brutal, o que nos dá a todos uma enorme confiança. O meu
papel é estar sempre presente em todos os sectores do serviço e ver tudo o que
é preciso, estabelecer pontes e resolver problemas estruturais para que a
máquina continue a funcionar. Tenho o telefone constantemente a tocar. São
solicitações do serviço, de outros hospitais, de outros colegas a pedirem ajuda
ou opiniões sobre o modo como estamos a proceder. Para lá disto tudo tenho a
atividade clínica, uma vez que sou intensivista e infecciologista. Temos a
Unidade de Cuidados Intensivos, onde temos estes doentes e onde faço também
serviço, às vezes de 24 horas. Felizmente, porque essa é a parte de que mais
gosto.
Qual foi a situação mais dramática que viveu neste período?
Ainda nem
tive tempo para pensar nisso, mas dramática é a situação em si. É tudo. Morre
um velhinho de oitenta e muitos anos, com diabetes, uma insuficiência cardíaca,
uma cirrose e coronavírus. Parece muito menos dramático do que se tivesse
morrido uma pessoa de 20 anos sem essas complicações todas e com covid-19. Não
se pode dizer isso. A morte é sempre a morte. O dramático é o conjunto de tudo
isto. Não podemos passar para o exterior a imagem de derrota nem de drama.
Estamos aqui empenhados, a lutar, com a certeza de que muita coisa boa vamos
poder fazer.
O exemplo que deu entre a morte do idoso e a do jovem é perturbante, tanto
mais que estamos num país e num continente com uma população cada vez mais
envelhecida, e em Itália essa questão está a colocar-se de forma dramática, por
falta de ventiladores para todos...
Temos de
pensar que todo o ser humano é intrinsecamente digno. A dignidade do velhinho
com Alzheimer é exatamente a mesma do estudante universitário com 22 anos. É a
dignidade inerente ao ser humano. Isto é difícil de explicar, mas temos de
analisar a situação. Não é o facto de ter 80 anos que deve ser limitativo a
qualquer tipo de tratamento. A idade, nunca. Agora, se o doente tem as chamadas
comorbilidades, uma insuficiência grave, com diabetes, uma cirrose e ainda com
covid-19, estar a interná-lo numa UCI pode ser inútil. Porque ele vai morrer na
mesma. O prognóstico é tão mau... Estaríamos a ocupar um ventilador com alguém
que na realidade não vai beneficiar dele. Não vai. Não é por ter 80 anos, é por
ter uma situação física de tal modo débil que o tratamento de cuidados
intensivos nem é eficaz e até pode ser prejudicial. Já está tão frágil que,
meter um tubo, sedá-lo, analgesiá-lo, ligá-lo ao ventilador pode dar cabo dele.
Não se pode dizer que há vidas que valem a pena e outras não. Qualquer vida
vale a pena. O que pode é não ter indicação. Se tiver uma pessoa com 92 anos e
válvulas cardíacas completamente calcificadas e faz uma endocardite, o
cirurgião torácico pode dizer que não opera aquele doente. Não por ter 92 anos,
mas porque ele lhe morre na cirurgia.
Quem deve, então, ir para os cuidados intensivos?
Todos
aqueles doentes em que a terapêutica pode ser benéfica. Aqueles em que achamos
que não vai ser benéfica, ou que até pode ser contraproducente, não os podemos
pôr neste serviço.
Há muita gente chocada com as notícias que chegam sobre essas opções e
dilemas. É tudo sustentado numa análise rigorosa?
É, porque é
com base em critérios objetivos. A mesma patologia em doentes diferentes pode
ter indicação cirúrgica nuns e noutros pode não ter. Desde logo porque ele pode
não aguentar a cirurgia. Nos cuidados intensivos temos de ver quais são aqueles
que vão beneficiar da terapêutica intensiva, que os pode curar, e aqueles em
que a probabilidade de serem curados é nula. Aqui não há considerações do ponto
de vista subjetivo. São decisões muito objetivas. Claro que se tivéssemos
recursos ilimitados de cuidados intensivos, se calhar tínhamos critérios mais
amplos de admissão do que numa situação em que há muito menos recursos do que
candidatos. Aí, temos de ser mais seletivos. De qualquer modo, mesmo que
tivesse cem camas de cuidados intensivos livres, e houvesse um doente com
imensas dependências, num estado quase terminal da sua vida, era má prática,
era obstinação terapêutica, admiti-lo em cuidados intensivos. Uma coisa é
prolongar a vida, que é o que fazemos. Outra é prolongar a morte. Para um
doente que está a chegar ao fim da vida, um ventilador prolonga-lhe, não a
vida, mas a morte. Está numa dependência total. Não morre hoje, mas morre daqui
a 15 dias, totalmente dependente.
O que mais o perturba?
É que sei
que vai morrer gente e a nós médicos custa-nos sempre imenso. Nunca nos
habituamos a ver morrer os doentes. Nunca. Nunca. Fomos formatados para a vida.
Não para a morte. Ver morrer pessoas é a grande carga de tudo isto. Por muitos
anos de médico que tenhamos, nunca nos habituamos. Nunca. E nos cuidados
intensivos a taxa de doentes que nos morrem no dia a dia é muito grande. Mas
nunca me habituei. Nem nenhum médico se habitua. É por isso que quando se
discute a questão da eutanásia, nós não estamos formatados para isso. Estamos
formatados para aliviar o sofrimento, prolongar a vida quando é possível
prolongar. Quando não é possível, devemos proporcionar uma morte sem
sofrimento, ou com o menor sofrimento possível. O que me perturba é os doentes
que vão morrer.
Como é que o Norte se transformou nesta espécie de centro do furacão da
pandemia?
Por uma
casualidade. Primeiro, nós, Hospital de São João, somos hospital de referência
para estas situações. Quando isto surgisse, nós, no Norte, e o Curry Cabral, no
Sul, seríamos hospitais de primeira linha. Depois, porque o grande epicentro
começou em Paços de Ferreira com o movimento de pessoas para as feiras de
calçado em Milão. Tínhamos aqui uma estrutura já bastante pensada para isto.
Claro que nunca está totalmente pensada porque há imprevistos. Por isso é que
começámos a dar uma resposta rápida.
Que ensinamentos retira daqui?
Retiro
várias coisas. Uma delas é que, como dizia Saint-Exupéry, se queres unir o
povo, dá-lhes um castelo para construir. Se queres desunir, dá-lhe pão para
repartir. Como estamos todos a construir este castelo, isto uniu imenso as
pessoas. Depois, vê-se imensa gente na sociedade ávida de ajudar. Não sabem bem
como, nem a estrutura ainda sabe muito bem como há de aproveitar essas pessoas,
mas há muita gente a querer realmente ajudar. Com o seu trabalho, com dádivas.
Não podemos sair daqui, não temos tempo para nada, estamos aqui horas e horas.
Não podemos, sequer, sair para ir almoçar ou jantar. Há um restaurante aqui da
zona das Antas que, por sua iniciativa, vem cá oferecer-nos as refeições todas,
gratuitamente. Sem termos pedido nada. Realmente as crises unem as pessoas. É
nestas situações que se vê que a essência humana é boa. Depois, é bom perceber
que os portugueses estão serenos, pacientes.
Como vê as manifestações, muito emocionais, de pessoas que vão para as
varandas cantar, como em Itália, ou escolhem uma hora para sair às janelas e
bater palmas aos profissionais de saúde, como em Espanha e Portugal?
Vejo isso
como defesa psicológica. Como estímulo. As pessoas sabem que têm de manter
alguma alegria, alguma força, a sanidade mental. Sabem que não podem entrar
todas em depressão. Daí esse instinto...
Como é que se reflete em vocês?
Precisamos
disso como de pão para a boca. Recebemos muitos estímulos, mensagens. Isso é
importante. Temos de nos salvaguardar psicologicamente. Temos de manter a nossa
sanidade e a nossa força para podermos continuar a apoiar os outros. Não
podemos fraquejar, nem fisicamente nem psicologicamente. Tenho mais medo do
colapso psicológico do que do colapso físico.
Esta deve ser uma das maiores crises que terá enfrentado ao longo da sua
vida profissional, embora também tenha estado na linha da frente quando
explodiu o problema da sida. Há diferenças de abordagem em relação a estes dois
casos?
Vejo
diferenças importantes. Na sida, embora no início se soubesse pouco, apesar de
tudo muito rapidamente sabíamos como é que se diagnosticava o vírus. Aqui
também se sabe. Sabia-se como é que se propagava, quais eram os hospedeiros e
como é que se evitava. Isso era muito claro. As pessoas sabiam exatamente quais
eram os mecanismos de transmissão e como é que os evitavam. Isso foi muito
rápido. Aquela fase de histeria, de andar tudo de máscara, passou rapidamente.
As pessoas viram que era um disparate porque muito rapidamente aprenderam como
é que se contagiavam e como podiam evitar o contágio. Isso sossegou as pessoas.
Na sida o medo diminuiu muito rapidamente. Independentemente das teorias da
conspiração que surgem sempre nas redes sociais, como dizer que o vírus da sida
podia estar no tampo de uma mesa. Isso há sempre. As pessoas perceberam que
fora dos comportamentos tipificados não havia contágios. Não era como a
covid-19 em que, de repente, aparecem mais 50 novos casos, mais 100 novos
casos, sem se saber como. É uma diferença muito grande. Presentemente, o
coronavírus está a assustar mais do que a sida.
Como é que chegou aqui? O que o atrai nesta especialidade?
Olhe, o que
eu gosto é de ser médico. Gosto tanto agora de ser médico como gostava quando
comecei, em 1978, ainda era aluno do 6º ano da faculdade, como monitor de
farmacologia terapêutica do professor Walter Osswald. Comecei a trabalhar como
médico no ano seguinte. Para mim, o sentido da medicina, como missão, como
cumprimento de um dever, é o mesmo agora que era há 40 anos. Há uma maturidade
médica que aumenta, há muitas coisas que mudaram, mas isso mantém-se.
Porque escolheu infecciologia?
Escolhi esta
especialidade como podia ter escolhido outra qualquer. Pode ser chocante
dizê-lo, mas não foi por nenhuma vocação especial. Só tinha de pensar se
gostava de ser médico, se gostava de ver doentes, se gostava do trabalho
clínico, se gostava de uma especialidade hospitalar. A resposta era sim a tudo.
Felizmente, quando fiz exame, podia ter escolhido a especialidade que quisesse,
porque me tinha corrido bem o exame. Entretanto tive a especialidade de
farmacologia clínica, que foi onde comecei a trabalhar, para além das
infecciosas, e depois tivemos de montar uma unidade de cuidados intensivos e
acabei por ter também a especialidade de medicina intensiva. Mas foi sempre por
acaso. A pessoa ou tem vocação para médico ou não tem. Ou tem vocação para a
clínica ou não tem. Depois depende do ambiente, da vontade. Não acredito que
haja pessoas que só tenham vocação para cardiologia ou pneumologia ou o que
seja. Não. Ou gostam de ser médicos ou não gostam. Se gostam, em qualquer das
especialidades são felizes.
Como é que a sua família está a lidar com esta situação, dado os riscos que
aparentemente corre?
Muito bem. A
minha mulher também é médica, de clínica geral. E vê muitos doentes. Mas é uma
pessoa completamente tranquila. Em minha casa toda a gente está tranquila. Aqui
estou muito mais seguro do que as pessoas em clínica geral, num Centro de
Saúde, a verem constantemente pessoas a entrar, a espirrar, a tossir naquelas
salas de espera. Um clínico geral corre muito mais riscos porque não sabe com o
que está a contactar. E eu sei.
Fora destes dias de crise, como ocupa o seu tempo livre? O que gosta de
fazer?
Gosto imenso
de ler, de ir tomar café com a minha mulher, ali pelas redondezas. Tomamos um
café num sítio, depois noutro, depois noutro. Agora que tenho netos, gosto muito
de brincar com eles, mas não os tenho visto. Gosto de passear. Ao fim de semana
pego no carro e vou com a minha mulher. E gosto de estudar. Tenho as leituras
de lazer, a literatura, mas gosto e necessito de estudar. No caso do cinema
chega a acontecer que por vezes me estou nas tintas para o filme que vou ver.
Porque do que eu gosto é do ritual de sair para ir ao cinema.
Com tudo o que já viveu nestas semanas, ainda há em si lugar para o
espanto?
A minha
cabeça não tem tempo para se angustiar. Só tem tempo para tentar resolver os
problemas. Com este stresse em que andamos ganhámos imensa energia, imensa
força, mas quando isto acabar, se calhar vamos passar um bocado de alguma
ressaca.
Quando vai para casa, ou quando se desloca para o hospital, como reage ao
ver uma cidade tão bela, mas tão brutalmente vazia?
Parece-me
que estou num sábado ou num domingo. O pior bocado do dia para mim, o mais
custoso, é, desde que me levanto até entrar no hospital. Porque estou a
antever, estou com medo do que vou encontrar. Depois de cá estar dentro e de
começar a trabalhar, acabou. Enquanto não entro no hospital, estou ansioso.
Depois de cá estar, tenho de me concentrar nas coisas que tenho para fazer e já
não tenho tempo para estar ansioso. Nem para angústias. oltar
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