sábado, 27 de dezembro de 2008
Contito - Olhitos
Via-se tão pouco daquela criança que mais parecia um bebé esquimó. Todo tapado, mãos e pés bem dentro do cobertor e a cabeça protegida por uma touca contra o dia muito frio, só se lhe viam os olhos e o nariz. Até a boca tinha tapada…
Só mexia os olhitos. Como um periscópio, atento a tudo o que passava à sua frente.
Ao vê-lo, ficava-se com a ideia de que o frio o tolhia, tal era a imobilidade da sua cabeça. Mas não. Era improvável que tivesse frio pois o carrinho onde estava era fechado, bem protegido do frio, e a roupa estava bem aconchegada ao seu pequenino corpo.
A surpresa é que, naquela imobilidade toda, os seus olhitos não paravam. Olhavam para cima e para baixo e de um lado ao outro acompanhavam todos os movimentos do que se lhe deparava. Deixavam transparecer uma curiosidade permanente e não qualquer desconforto. Certamente que o frio não o incomodava. Mantinha um olhar neutro, uma cara “fechada”, sem quaisquer sinais de agrado ou surpresa e não manifestava nenhuma expectativa perante o que presenciava. Uma aparente e completa indiferença.
Tudo observava, tudo o interessava e os olhos pretos, muito redondos, quase sem pestanas, acompanhavam permanentemente até ao horizonte tudo o que o carrinho baixo lhe permitia ver.
Mirava e remirava, só virando os olhitos. Da cara não transparecia qualquer emoção e a cabeça nunca rodava, só os olhos se moviam num zelo constante. Fixavam-se nas pessoas que passavam por perto e acompanhavam-nas enquanto se afastavam até as perder de vista. Também via os sacos de cores vivas que só olhava fugazmente, desinteressando-se logo que avistava algo novo. Os carrinhos com outros meninos, os embrulhos e as caixas grandes também ocupavam pouco a sua atenção. Observava uns instantes e logo mudava o foco da sua observação.
A sua tranquilidade foi uma vez interrompida por um breve choramingar de outro bebé, o que lhe franziu brevemente a testa. Por escassos instantes. Mal o outro se calou ele retomou a sua placidez até o latido de um cão, lá ao longe, lhe interromper o movimento dos olhos como que para não perturbar o esforço de identificação do animal, que lhe seria familiar. Mas depressa ignorou o cão e voltou à rotina da sua metódica observação.
Entretanto, uma música próxima surpreendeu-o e ele revirou os olhos para localizar a balada húngara acompanhada por violinos. Concentrou-se, piscou os olhos ao ritmo da melodia e abriu-os mais à medida que o som se intensificava. Depois, com a dissipação deste mavioso sobressalto, a sua atenção decaiu, os olhitos piscaram mais e ele em breve esmoreceu a atenção com que acompanhava quem passava. Via as pessoas, isso via, mas de relance, pois já não as acompanhava até as perder de vista. Com a atenção cada vez mais entorpecida, focava agora cada pessoa sem nela se deter mais do que um instante e logo deslocava os olhos na direcção de quem vinha a seguir.
A pouco e pouco a observação cuidada foi-se atenuando e os olhitos vivos e curiosos, que tudo registavam, começaram a semicerrar-se, cada vez com mais frequência. A sesta da manhã parecia estar à porta...
Porém, num relance sonolento, vislumbra um vulto conhecido e imediatamente os seus olhos retomam a vivacidade anterior. A carita redonda abre-se num sorriso quando o pai se aproxima, os braços e as pernas agitam-se sob o cobertor e, mal o pai lhe pega, uma gargalhada substitui a carita circunspecta do observador atento que fora até então.
A gargalhada converteu-se em atenção gulosa mal viu o pai tirar o biberão da sacola e agitar o leite em pó do seu almoço.
Acabada a refeição, empertigou-se quando o pai o encostou ao ombro e lhe deu palmadas nas costas para que arrotasse. Mudado para o colo, aí se aninhou, confortável e bem-disposto, com os olhitos a brilharem de satisfação.
Quando o “peso da refeição” o amoleceu e ia passar pelas brasas, ouviu uma voz familiar que o fez arrebitar e voltar-se para o avô, que, de braços abertos, estava a dois passos. Esperneou intensamente, tentando pôr-se de pé, e do seu rosto transparecia uma alegria intensa, alegria que também manifestava num palrear que o avô ouvia, deliciado, como o mais belo palreio do mundo.
Estendeu os bracitos para o avô, que lhe pegou e abraçou, cheio de ternura, não se apercebendo de que, com tal alegria, o seu fato domingueiro acabava de ser brindado com uma mancha de leite bolçado pelo neto.
O pai disse ao avô babado que tinha o casaco bolçado e o bebé, cujos olhitos observadores viram a cara desconsolada do avô, deu uma gargalhada estridente. Gargalhada que fez o avô esquecer a mancha no fato novo e a descompostura que levaria por não se proteger com uma fralda quando põe o neto ao colo.
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