domingo, 13 de junho de 2010

Furou-me toda, friamente

Contito
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Acordei muito lentamente. Abri os olhos a custo, querendo ver e as pálpebras a fecharem-se, pesadonas. Depois de muito esforço e de um tempo infindo vi, pelas frestas pequeninas o branco que me rodeava. O branco das paredes e lá ao longe, muito longe, uma mancha escura. Esforcei-me para perceber o que era e que contrastava com o branco que a envolvia. Passaram-se certamente uns minutos até ter conseguido identificar a mancha, mas, na altura, pareceu-me um século, um século dos séculos das trevas, mas finalmente descobri o que era, ali à frente estava uma televisão, desligada.

Continuei o esforço de identificação do que me rodeava e, já mais acordada, reconheci um armário, uma mesa, também esbranquiçados. E ao lado, ao lado não havia nada. Havia, descobri depois, eu é que, ao acordar assim tão devagarinho, não conseguia deslocar a cabeça e portanto, só via o que estava à frente dos meus olhos.

Para compensar a dificuldade de ver dos lados, levantava e baixava os olhos. E foi durante esta azáfama que dei com o varão, igualmente branco, mesmo à minha frente. Vi-o quando baixei os olhos. Estranhei esta coisa branca mesmo ali e esperneguei os olhos para focar o tubo branco. Não. Não era branco, era de uma cor mais baça, cor de marfim, o que verifiquei quando o vazio que sentia na cabeça começou a dissipar-se. E não era um varão, era a armação dos pés de uma cama.

Senti um choque, um estremeção, como que um choque eléctrico. Dos fraquinhos, já agora. E aí estava eu finalmente acordada. Acordada, mas meio zonza. E acordada num hospital!

Sou uma rapariga com boa memória e nem a anestesia da cesariana do Mário me tinha deixado tão deslembrada. Por isso me senti ainda mais estranha: não me ocorria o que me levara àquela cama de hospital. E a cabeça começou a desbobinar hipóteses. Teria sido outra cesariana? Não podia ser. O Tozé está em Timor há quase um ano, eu não fui lá e, apesar de me custar, resisto bem aos apelos da carne. Teria sido atropelada? Mexi braços e pernas e, salvo alguma rigidez e suor nas pernas, estavam bem. Macacoa de coração também não seria, fiz testes há pouco, sou uma fanática do ginásio e como mais peixe que carne e mais legumes que peixe.

Mas nunca se sabe... Estava eu nisto quando oiço dois toques na porta e me entra por ali dentro um vulto de fatiota verde. De repente ainda me pareceu uma burca, mas não podia ser, a cara estava destapada e o carão profissional não passaria pelos buraquinhos das máscaras das desgraçadas das afegãs. E foi um homem, pequenino, com uma bata pelos pés e sem mangas, mostrando uns braços fininhos, que me perguntou:

–  Então como se sente!? Portou-se muito bem!

Apeteceu-me perguntar-lhe se não tinha frio nos braços, até pareciam em pele de galinha, mas tinha de esclarecer as minhas dúvidas:

–  Estou bem, mas porque é que aqui estou?

Já mais lúcida, mas ainda não completamente desperta, fui ouvindo o que me dizia e foi então que liguei os pontos todos. Tinha dado um tombo e o ortopedista, este mesmo com cara de fuinha e de rosto sério e tranquilizante, lera-me a sentença: faca. O menisco partira e só havia uma solução. Explicou-me o que faria, era coisa simples, meia horita e ficava como nova, ou quase, disse num esgar de manual de simpatia de cobrador.

Ainda lhe perguntei o que faria se desse para o torto, se eu desmaiasse, esses medos que todos temos quando nos apontam o dedo para o bloco operatório. Falou-me do pós-operatório, do tempo de convalescença, mas foi especialmente pormenorizado na descrição do procedimento cirúrgico. E descansou-me: eu não desmaiaria, esse servicinho ficava a cargo da anestesista! Não seria bem desmaiar… E que não me preocupasse, ele não se enervava ao ver sangue, nem que esguichasse e que faria tudo meticulosamente: a calma e a tranquilidade fazem parte do protocolo.

E foi mesmo assim, foi assim que este fuinha de gibão verde me furou toda; não foi bem toda, foram só três buraquinhos no joelho, que ele furou friamente, sem pinga de emoção!




Manuel A. Madeira
Lisboa, 6 de Março de 2009

1 comentário:

Anónimo disse...

E o teu joelho, qdo é que é remendado? Ou já foi????? bjs