quarta-feira, 15 de abril de 2009

Fazer Figura

.
Contito Infantil para Adultos


No tempo em que os animais falavam...

Era uma vez uma borboleta, a Borboleta Roberta, que se perdeu de amores por um bicho-de-conta, o Direitinho, seu vizinho na Serra da Arrábida, que lhe fazia serenatas de partir o coração e só não lhe arrastava a asa por falta de recursos.

Namoraram uns meses, pata na pata, passeios à noite, muito sofá, fins-de-semana com os pais de um e com os do outro e os compadres decidiram casá-los quanto antes. Já naquele tempo as hormonas não eram de fiar e o nome de famílias tradicionais não podia ser manchado.

A Arrábida em peso caiu na quinta El Carmen, especializada em casamentos de estadão. No parque viam-se carros das melhores marcas. Lá estava um carrão de um jogador de futebol a viver fora de portas, que se apresentou com o melhor gel de cristas de cabelo de Paris.

Lá estava também o jipe BM do passarão da bolsa e a limusina que trouxera a noiva e levaria o feliz casal após a celebração. Ah, e ainda o Mercedes do bispo, que embora não ombreando com aquelas bombas, não o deixava fazer má figura, cumpria os seus votos de pobre entre os pobres.

Fotógrafos e jornalistas cirandavam entre os convidados à cata dos modelos da última Lisboa Fashion, importações de Badajoz e das cores além Pirinéus. Estavam também de olho nos “mal vestidos” que, nos dias que então corriam, uma festa daquelas com “maltrapilhos” implicava garantidamente aumento de tiragem e bónus por sapatos cambados ou chapéus já vistos em sociedade, noutras aparições...

A noiva vestia Alícia Miércoles, oferta das amigas da Sierra Nevada, lantejoulas cerzidas em cetim bege que davam ao vestido curtinho, muito cintado, um ar majestoso. Sem chapéu, um atrevimento, mas, em seu lugar, uma tiara cravejada de diamantes fazia da Borboleta Roberta uma noiva de sonho. Estava encantadora e os cronistas dos famosos anotaram com agrado que, apesar da sua beleza e do notável corte do vestido de noiva, sempre se mostrou simpática com toda a bicharada. Mesmo para com jornalistas perguntadeiros, motoristas linguarudos, velhas empoadas, galos capões e novas endiabradas.

O noivo estava imponente no seu fraque de fininhos ricos verticais, que lhe davam uma postura senhorial, enfatizada pela faixa cinzenta bem coladinha à engomadíssima camisa branca e pela gravata roxa com alfinete de esmeralda. O seu pavão consultor de imagem não prescindira desta pedra. Impunha-se uma cor viva que valorizasse a sua cor natural, insistira, para fazer boa figura na capa das revistas cor-de-rosa.

A madrinha da Borboleta Roberta foi a Joaninha Fabiana que, vestida pelo estilista Vitó Tamboril, levava um vestido de tafetá muito amplo, plissado nas ancas para não prender o andar, e com bolinhas antracite. Não foi pouca a inveja que se viu de uma joaninha bonitinha e delicada, fina mesmo, que fez um figurão.

O padrinho da Borboleta Roberta, um pato-marreco que todos tratam por Verruga, trazia roupa informal, desgarrada, tipo salada mista com milho, rodelas de beterraba, orégãos e queijo fresco, suscitando olhares reprovadores do bispo, que preferia as suas ovelhas mais normalizadas, a fazer melhor figura.

O casamento foi uma cerimónia muito bonita. A Borboleta Roberta entrou, serena e um pouco pálida, pelo braço do padrinho Verruga ao som da Toccata e Fuga em ré menor, de Bach, cujas notas de violinos e harpas lhe libertaram feromonas felizes. O noivo Direitinho seguia-a enlevado neste odor e, altivo, pisava com determinação o chão da capela de El Carmen. Quando o bispo ungiu os compromissos eternos, o coro entoou Arrábida virada ao mar, uma balada heróica, e a bicharada convidada, ao ouvir os sins beijocados, aplaudiu tão entusiasticamente que se ouviu em Tróia.

Da capela à tenda do copo de água, num tapete de rosas amarelas ornado de cravos vermelhos, os noivos foram levados literalmente pelo ar. Toda a bicheza da Arrábida quis tocar os noivos, todos quiseram partilhar a sua alegria e estava tudo eufórico. Não houve bicho arrabidense ou forasteiro convidado que não estivesse emocionado.

O próprio bispo, habitualmente um apreciador contido, se alargou um pouco no sangue divino da liturgia nupcial. Para abafar a emoção, confessaria mais tarde ao sacristão que, invejoso, notara com mágoa o abaixamento na garrafa do branco sagrado.

Não era dia para tristezas pelo que o sacristão e o bispo, os noivos, a madrinha e o padrinho, os vizinhos, convidados e proprietários das quintas desta reserva ecológica, todos beberam. E beberam bem! Bem bebidos e bem comidos, animaram a festa até o sol mostrar a cara. Era vê-los dançar revivalistas twists, sensuais tangos e slows com destino marcado! Com as celestiais excepções, como “O Diário da Arrábida” deu à estampa por dever jornalístico e amor aos patrocínios.

A meio da festa desabrochou o karaoke e os espontâneos versejaram à desgarrada com vozes mais ou menos esganiçadas. Nos cantos, grupinhos de bichos de todas as espécies, classes, ordens e géneros entretinham-se a examinar os que vestiam isto ou bebiam aquilo ou a meter os narizes decotes adentro. E tanto apontavam o dedo escarninho a chapéus de algumas fêmeas como comentavam a figura de certos focinhos farinhentos, à moda dos carnavais de Veneza.

Lá pelas tantas, agradecidas as presenças dos notáveis, confirmadas as prendas via NIB, os noivos saíram discretamente: havia um casamento a consumar...

Mas a festa continuou, a banda Arrábida Batida Sistema, no seu ritmo possante, a dança em alta, rimas em acesos despiques e as garrafas em rijo tilintar. Mas as águas foram ganhando terreno... e festa é festa, há uma hora em que tudo murcha.

Agora um, logo dois, aos poucos foi a debandada, descontados os que dormiam pelos cantos, debaixo das mesas ou empoleirados nas espias da tenda insuflável. Fora uma grande festa, uma coisa de se lhe tirar o chapéu: o casamento da Borboleta Roberta com o Bicho-de-conta Direitinho ia ficar na história da Arrábida.

A piscar os olhos da longa noite de vigília, o Gavião Segurança-Mor dirigiu-se à cozinha onde foi encontrar o Lagarto Cozinheiro-Chefe a orientar as arrumações do fim de festa.

- Bom dia Chefe! Também deve estar estoirado, vocês não pararam!

- Pois estou, estamos todos derreados, hoje foi a valer...

- Desculpe lá, se não for muito incómodo, não se arranja aí qualquer coisita que se coma? Passei a noite a ver navios...

-Então não arranjo! Chame lá o seu pessoal, que merecem, isto correu que nem ginjas. Lidaram bem com a malta bem bebida, foi vê-los aí que nem tordos e os seguranças a alombar com eles à medida que tombavam! Mas diga lá, vão umas cilarcas gratinadas, umas papas de aveia com água-mel ou fica-se por um ‘sushi’ de minhocas, que me gabaram toda a noite?

- Não sei...

- Também temos rebentos de bambu em caldo de soja e osgas fritas que estão uma delícia. Foi o meu
almoço, antes desta balbúrdia começar. As osgas são de cultura biológica. Certificadas.

- Então venham lá essas. E não se arranja também um copito de tinto!?


O Lagarto Cozinheiro-Chefe foi buscar umas travessas muito bem arranjadas, trouxe ainda reservas de Alfrocheiro e Bucelas carregado de arinto e copos para toda a bicharada da segurança. Ficou a fazer-lhes companhia, bebericando e tasquinhando, enquanto a conversa andava à roda do grande casamento a que tinham assistido.

- Foi obra, disto não é todos os dias! Há muito tempo que não se via... gastaram uma pipa...

- E veio bicheza de todo o lado. Não sabia que eram assim tão influentes, tão cheios de bago.

- Pois são. E viram os políticos a saracotearem-se de mesa em mesa, a mostrar a dentuça e à pedincha de lugar nas próximas listas? Até o Grilo Pimpão fez discurso, muito gosta aquele gajo de se pavonear!

- Pior foi a Lagartixa Gervásia, sempre armada em grande senhora, a querer fazer boa figura e, ao terceiro copo, o chapéu encarnado estava numa rodilha. E toda descomposta, de miudezas ao léu! Se não fosse o Pardal de Bico Amarelo a sacá-la, a barraca era completa...


- Quem esteve sempre impecável foi a noiva, a Borboleta Roberta estava uma brasa. Repararam no vestido, pelo meio da canela, mesmo no ponto, sortudo aquele bicho-de-conta!?

- Ele também se portou bem, sim senhor. E fez muito boa figura, lá isso fez!

- Olha lá, a propósito, que raio é que o bispo tinha vestido? Parecia uma toga de advogado, mas em branco, com umas coisas pintalgadas.

- São fatiotas deles. Coisas que vêm na Bíblia, acho eu…


- Mas há bocado passou aí um cágado, a rir-se à socapa para a namorada, uma salamandra, a dizer que a noiva estava deslumbrante mas que não chegava aos calcanhares do bispo.

- Invejas!

Um paparazzi freelancer que se tinha feito convidado para este derradeiro festim, é que esclareceu tudo:

- O que me disse o sapo, o motorista dele, é que veio de alva de algodão e que aqueles riscos que se vêm ao comprido são bordados a fio de ouro e os debruns são em renda de bilros. Feitos na Madeira. A estola é que é em seda; garantiu-me que é uma peça de seda pura, 100% seda. E “Made in Italy”!

- Está bem, sim senhor, o homem também não podia vir fazer má figura à Arrábida, isto não é um sítio qualquer...




Lisboa, 27 de Janeiro de 2009

Sem comentários: