É de João Peculiar, ou era, que o visado foi bispo do Porto e Arcebispo Primaz de
Braga, tendo morrido em 1172.
Conselheiro do nosso primeiro rei, foi seu representante em negociações
para a independência de Portugal.
Ora, seja qual for a abordagem, o ângulo, a perspetiva, é sempre um
majestoso órgão, um senhor membro. Celestial, embora!
Ou serão essas mutilações fruto de alguma ancestral animosidade para com os
que vivem à sombra dos poderosos? Verdade que exerceu aquilo a que hoje seriam
funções de estratega e consultor, embaixador e seu instrumento diplomático. Foi
a Roma 14 vezes, em negociações com o papa...
E na tomada de Lisboa aos Mouros, fez este discurso aos senhores muçulmanos
da cidade, em 1147, o que mostra a sua faceta de combatente armado de diplomacia.
"O Deus de paz e de
amor retire dos vossos corações a venda do erro e vos converta a si.
É que nós viemos ao
vosso encontro para vos falarmos de paz. Com a concórdia, efetivamente, as
coisas pequenas crescem, com a discórdia as maiores definham. Ora para que esta
não reine entre nós por todo o sempre é que vimos ter aqui convosco a fim de
chegarmos a uma conciliação.
Efetivamente, a
natureza gerou-nos a todos de um só e mesmo princípio, de tal modo que não
ficaria bem que, estando ligados por um pacto de solidariedade humana e por um
vínculo de concórdia da mãe de todos, nós vivêssemos desagradados uns com os
outros.
Nós, pela nossa
parte, não vimos a esta cidade, que está na vossa posse, para vos lançar fora
daqui nem para vos espoliar. Uma coisa tem, efetivamente, sempre consigo a
inata benignidade dos cristãos, é que, embora reivindique o que é seu, não
rouba o alheio. O território desta cidade reivindicamo-lo como sendo nosso por
direito; e, por certo, se em vós alguma vez tivesse medrado a justiça natural,
sem vos fazerdes rogados, com as vossas bagagens, com haveres e pecúlios, com
mulheres e crianças, vos poríeis a caminho da terra dos mouros de onde viestes,
deixando a nossa para nós.
É-nos, pelo
contrário, sobejamente conhecido que só a contragosto ou forçados a isso o
fareis. No entanto, procurai fazê-lo por vossa iniciativa, pois se aceitardes
de boa mente o que vos rogamos, estareis imediatamente a salvo das
consequências mais amargas do que pretendemos. Que tipo de conciliação se possa
estabelecer entre nós não o sei, pois a sorte que há-de caber a cada um não
está garantida a ninguém, à partida. Fostes vós que viestes da terra dos mouros
e dos moabitas e raptastes fraudulentamente o reino da Lusitânia a um rei vosso
e nosso. São inúmeras as depredações que se fizeram e
continuam ainda a fazer sobre cidades e aldeias com as suas igrejas desde esse
tempo até hoje. Por uma parte, ficou em causa a vossa lealdade, por outra
parte, ficou lesado o convívio em sociedade.
Há já uns 358 anos ou
até mais que tendes ilegitimamente nas vossas mãos cidades que
são nossas e a posse das nossas terras, anteriormente a vós habitadas por
cristãos a quem nenhuma espada de exator forçou a abraçar a fé, mas só a
palavra da pregação tornou filhos adotivos de Deus, no tempo do nosso apóstolo
Santiago e dos seus discípulos, Donato, Torquato, Secundo, Indalécio, Eufrásio,
Tesifonte, Victor, Pelágio e muitos outros assinalados varões apóstolos. Temos nesta cidade como testemunho o sangue
derramado pelo nome de Cristo no tempo do governador romano Daciano por parte de mártires como Máxima, Veríssimo e a virgem Júlia.
Consultai o concílio de Toledo celebrado no tempo de Sisebuto, glorioso rei
nosso e também vosso; é-nos testemunha Isidoro, arcebispo de Sevilha, e o bispo
de Lisboa desse tempo, Viérico, com mais de duzentos bispos de toda a Hispânia. Atestam-no ainda nas cidades sinais manifestos das
ruínas das igrejas.
Mas, dado que tendes
mantido a cidade ocupada em uso longo com propagação das vossas estirpes,
usaremos para convosco do habitual sentimento de bondade. Entregai nas nossas
mãos a guarnição do vosso castelo. Cada um de vós terá as liberdades que tem
tido até aqui. Não queremos, efetivamente, expulsar-vos dos vossos
assentamentos tão antigos; viva cada um segundo os seus costumes, a não ser que
espontaneamente queira vir aumentar a Igreja de Deus.
Como observamos, é
riquíssima e bastante próspera a vossa cidade, mas está exposta à avidez de
muitos.
Efetivamente, quantos arraiais, quantos navios, que multidão de gente
está em conjura contra vós! Tende em atenção a devastação dos campos e dos seus
frutos. Tende em atenção o vosso dinheiro. Tende ao menos em atenção o vosso
sangue. Aceitai a paz enquanto vos é favorável, pois é bem verdade que é mais
útil uma paz nunca posta em causa que outra que se refaz com muito sangue; de
facto, é mais agradável a saúde nunca alquebrada que a que foi recuperada
depois de graves doenças e sob ameaças de medidas forçadas e exigências
extremas para ficar a salvo. É grave e fatal a doença que vos atinge; outra
virá se não tomardes uma resolução salutar: ou ela se extingue ou vós sereis
extintos. Tomai cuidado, pois a rapidez apressa o fim. Cuidai da vossa
segurança enquanto tendes tempo.
Antigo, na verdade, é o provérbio que diz:
«na arena é que o gladiador forma o seu plano». A partir de
agora a resposta pertence-vos a vós, se assim vos aprouver".
Em nome de tão patrióticas como beligerantes palavras, daqui,
deste singelo púlpito, se lança um sentido apelo.
Que
nunca mais se danifique, que nem sequer se belisque, o desditoso cajado de João Peculiar, homem que tão
bem serviu Portugal.
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