sábado, 26 de julho de 2014

Um peculiar instrumento



É de João Peculiar, ou era, que o visado foi bispo do Porto e Arcebispo Primaz de Braga, tendo morrido em 1172.

Conselheiro do nosso primeiro rei, foi seu representante em negociações para a independência de Portugal.

Ora, seja qual for a abordagem, o ângulo, a perspetiva, é sempre um majestoso órgão, um senhor membro. Celestial, embora!


E, talvez por isso, não escapa à sanha vândala, pois há relatos de danos que periodicamente lhe são infligidos.

Ou serão essas mutilações fruto de alguma ancestral animosidade para com os que vivem à sombra dos poderosos? Verdade que exerceu aquilo a que hoje seriam funções de estratega e consultor, embaixador e seu instrumento diplomático. Foi a Roma 14 vezes, em negociações com o papa...

E na tomada de Lisboa aos Mouros, fez este discurso aos senhores muçulmanos da cidade, em 1147, o que mostra a sua faceta de combatente armado de diplomacia.


"O Deus de paz e de amor retire dos vossos corações a venda do erro e vos converta a si.
É que nós viemos ao vosso encontro para vos falarmos de paz. Com a concórdia, efetivamente, as coisas pequenas crescem, com a discórdia as maiores definham. Ora para que esta não reine entre nós por todo o sempre é que vimos ter aqui convosco a fim de chegarmos a uma conciliação.
Efetivamente, a natureza gerou-nos a todos de um só e mesmo princípio, de tal modo que não ficaria bem que, estando ligados por um pacto de solidariedade humana e por um vínculo de concórdia da mãe de todos, nós vivêssemos desagradados uns com os outros.

Nós, pela nossa parte, não vimos a esta cidade, que está na vossa posse, para vos lançar fora daqui nem para vos espoliar. Uma coisa tem, efetivamente, sempre consigo a inata benignidade dos cristãos, é que, embora reivindique o que é seu, não rouba o alheio. O território desta cidade reivindicamo-lo como sendo nosso por direito; e, por certo, se em vós alguma vez tivesse medrado a justiça natural, sem vos fazerdes rogados, com as vossas bagagens, com haveres e pecúlios, com mulheres e crianças, vos poríeis a caminho da terra dos mouros de onde viestes, deixando a nossa para nós.

É-nos, pelo contrário, sobejamente conhecido que só a contragosto ou forçados a isso o fareis. No entanto, procurai fazê-lo por vossa iniciativa, pois se aceitardes de boa mente o que vos rogamos, estareis imediatamente a salvo das consequências mais amargas do que pretendemos. Que tipo de conciliação se possa estabelecer entre nós não o sei, pois a sorte que há-de caber a cada um não está garantida a ninguém, à partida. Fostes vós que viestes da terra dos mouros e dos moabitas e raptastes fraudulentamente o reino da Lusitânia a um rei vosso e nosso. São inúmeras as depredações que se fizeram e continuam ainda a fazer sobre cidades e aldeias com as suas igrejas desde esse tempo até hoje. Por uma parte, ficou em causa a vossa lealdade, por outra parte, ficou lesado o convívio em sociedade.

Há já uns 358 anos ou até mais que tendes ilegitimamente nas vossas mãos cidades que são nossas e a posse das nossas terras, anteriormente a vós habitadas por cristãos a quem nenhuma espada de exator forçou a abraçar a fé, mas só a palavra da pregação tornou filhos adotivos de Deus, no tempo do nosso apóstolo Santiago e dos seus discípulos, Donato, Torquato, Secundo, Indalécio, Eufrásio, Tesifonte, Victor, Pelágio e muitos outros assinalados varões apóstolos. Temos nesta cidade como testemunho o sangue derramado pelo nome de Cristo no tempo do governador romano Daciano por parte de mártires como Máxima, Veríssimo e a virgem Júlia. Consultai o concílio de Toledo celebrado no tempo de Sisebuto, glorioso rei nosso e também vosso; é-nos testemunha Isidoro, arcebispo de Sevilha, e o bispo de Lisboa desse tempo, Viérico, com mais de duzentos bispos de toda a Hispânia. Atestam-no ainda nas cidades sinais manifestos das ruínas das igrejas.

Mas, dado que tendes mantido a cidade ocupada em uso longo com propagação das vossas estirpes, usaremos para convosco do habitual sentimento de bondade. Entregai nas nossas mãos a guarnição do vosso castelo. Cada um de vós terá as liberdades que tem tido até aqui. Não queremos, efetivamente, expulsar-vos dos vossos assentamentos tão antigos; viva cada um segundo os seus costumes, a não ser que espontaneamente queira vir aumentar a Igreja de Deus.
Como observamos, é riquíssima e bastante próspera a vossa cidade, mas está exposta à avidez de muitos. 

Efetivamente, quantos arraiais, quantos navios, que multidão de gente está em conjura contra vós! Tende em atenção a devastação dos campos e dos seus frutos. Tende em atenção o vosso dinheiro. Tende ao menos em atenção o vosso sangue. Aceitai a paz enquanto vos é favorável, pois é bem verdade que é mais útil uma paz nunca posta em causa que outra que se refaz com muito sangue; de facto, é mais agradável a saúde nunca alquebrada que a que foi recuperada depois de graves doenças e sob ameaças de medidas forçadas e exigências extremas para ficar a salvo. É grave e fatal a doença que vos atinge; outra virá se não tomardes uma resolução salutar: ou ela se extingue ou vós sereis extintos. Tomai cuidado, pois a rapidez apressa o fim. Cuidai da vossa segurança enquanto tendes tempo.
Antigo, na verdade, é o provérbio que diz: «na arena é que o gladiador forma o seu plano». A partir de agora a resposta pertence-vos a vós, se assim vos aprouver".

Em nome de tão patrióticas como beligerantes palavras, daqui, deste singelo púlpito, se lança um sentido apelo.

Que nunca mais se danifique, que nem sequer se belisque, o desditoso cajado de João Peculiar, homem que tão bem serviu Portugal.


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