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Ele nem sabe porque dois beijos repenicados têm um efeito tão rápido. Ela nem pensa nisso. A cena repete-se com tanta frequência que já se converteu num ritual. Não vale a pena zangar-se, fazer cara feia ou amuar… Aquela teimosia dela tem de ser levada com jeito e já decidiu não ser ele a abrir um conflito ou a toldar um ambiente que, em geral, é tranquilo e lhe enche o coração.
É um amor muito forte, um amor que dura há quatro deliciosos anos e não será ele a beliscar a solidez de uma laço tão gratificante. O trabalho às vezes exige-lhe um excessivo desgaste emocional, deixa-lhe a paciência no limite e não são poucas as vezes que acaba o dia capaz de implicar pelas coisas mais insignificantes…
Ainda por cima com a concorrência a acenar com mais uns trocos e umas mordomias que não seriam de desprezar! Mas ele é um homem fiel, fiel à família e fiel à empresa que, apesar das arrelias, o tem tratado com dignidade. Se fosse para os outros não ia deixar de ter chatices… por isso se deixa estar. Quando está mais em baixo vai ao escritório e uma mirada na fotografia dá-lhe novo fôlego e o lembrar-se dos beijos repenicados é o tranquilizante que atenua a acidez dos dias mais bicudos.
Mas ela é muito teimosa, se não tivesse medo de a magoar diria mesmo que é casmurra. Muito casmurra. Quando lhe dá para ali é um inferno, só a consegue demover com beijos repenicados. Foi uma convenção que se estabeleceu, uma regra não escrita, um padrão que, de um dia para o outro, vá-se lá saber porquê, passou a guiar-lhe o comportamento.
Tudo começou uma noite em que ela, zonza de sono, estava relutante em ir para a cama e ele tinha uma certa pressa.
– Vá lá, querida, não podes ficar aí a noite toda!
E ela nada, não tugiu nem mugiu, nem sequer pareceu ouvi-lo. Para não ter de a arrastar a protestar casa fora, deu-lhe duas repenicadas beijocas. Era uma tentativa de a amaciar. Ela, ensonada, arrebitou um pouco e pediu-lhe que repetisse. Ele repetiu, ela sorriu e, sem qualquer resistência, levou-a para a cama, com o quarto já à meia-luz. Daí em diante o método tornou-se rotina.
Só beijos repenicados a tiram do sofá. E sempre dois. Só depois dos dois beijos repenicados que o pai lhe dá na bochecha é que a menina se levanta e, aos ziguezagues sonolentos, vai para a cama. Enfia-se lençóis dentro e, depois de mais dois beijos repenicados, volta-se de lado, põe as mãozinhas fechadas junto ao queixo e adormece com o sorriso a desvanecer-se na carita.
A mãe, encostada à ombreira da porta, aprecia esta cena que sempre a enternece. Quando ele apaga a luz da mesa-de-cabeceira, depois de aconchegar o lençol bem juntinho ao pescoço da filha, saem ambos, encostando a porta cautelosamente.
Manuel A. Madeira
Lisboa, 9 de Novembro de 2008
sexta-feira, 30 de abril de 2010
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