quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

O cabo e os nós - Contito

Ou como não se deve gozar com especialistas
 
 

 
Recebeu um pedido de informação do chefe e abriu a base de dados, selecionou o produto e ao pesquisar o preço foi aí que o cabo deu cabo da tarde. Olhou para a ligação à rede e estava a piscar, deu duas palmadas no monitor a ver se era mau contacto e ficou tudo na mesma. Levantou o teclado a aplicou-lhe a PFS com que o programador caga-códigos identifica uma pancada forte na secretária e o pisca-pisca manteve-se. A resmungar contra o Governo, a Maçonaria e a Opus Dei, levantou-se e foi ver se o cabo estava conectado e, na dúvida, apertou dois parafusos verdes que lhe cheiraram a frouxos.
Voltou a sentar-se com um optimismo que rapidamente se converteu em desilusão e esta certamente ia dar em PIT, coisa que nem sequer lhe passara pela cabeça. Telefonou à assistência e, numa voz melosa, a menina afectada do secretariado técnico leu-lhe a cartilha.
-   Não posso fazer nada, tem de mandar um PIT, já sabe! Sabe como é, são as normas… o chefe é um guloso por PITs…
Com um piii gutural a ameaçar fugir-lhe boca fora, ajeitou o teclado para abrir o SIM-PORR, mas parou de repente ao ver que a avaria nem pusera o ecrã às riscas. Voltou a telefonar à boazona falsa-sonsa do secretariado e, num tom já toldado pela raiva, mal a ouviu fulminou-a à queima-roupa:
-   Como é que a menina quer que mande o PIT, se a avaria nem me dá acesso ao SIM-PORR!?E não se esqueça que isto é uma CAC!
-   Não interessa, até podia ser uma MIJ, são ordens, use aí o pc do colega que está de férias e mande o PIT para cima. E não se esqueça de dizer que é CAC para irem mais depressa! lembrou ela, muito profissional.
Evaristo, com trombas de peru de engorda, lá ligou o pc do colega e mandou o PIT e ao PIT seguiu-se a visita de dois técnicos SIM-PORR. Ora um ora outro, ligaram e desligaram, massajaram cabos e apalparam todas as fichas uma a uma, fizeram sucessivos log off e shut down à procura da marosca do computador que estava a dar cabo da tarde. Sem qualquer resultado. O pisca resistia estoicamente às puxadelas, aos apalpões, às carícias, às súplicas divinas e aos suspiros técnicos. O mais alto começou a suar em bica e ao outro deu-lhe tal nervoso miudinho que não parava de rir a bom rir.
A um canto, com cara de gozo, o Evaristo não só ria do riso do outro, como provocava os dois inquietos técnicos que se sentiam tão incomodados pela chacota dele como frustrados pela coisa de que não descortinavam a causa:
-   Vocês saíram-me cá uns artistas, seus SIM-PORR! Aparecem aqui de mãos a abanar, vê-se mesmo que nem sabem o que é um voltímetro! Nós, do Técnico, somos técnicos, temos equipamento e sabemos usá-lo!
Porque non te callas?! ainda quis brincar o mais baixo, mas o Evaristo não descolou:
-   Oh homens do diabo, vocês não se safam só a cheirar as extremidades, olhem-me para o miolo dos cabos, é aí que os eletrões se cruzam com os protões e às vezes ficam na cavaqueira! É isso que entope…
Tanto insistiu que os SIM-PORR lá se resolveram a trocar cabos noutras fichas e rapidamente concluíram que o cabo tinha pifado, por ele não passava nem pinga de sinal, nem que o soprassem com bafo de bolo de mel da Madeira. Saíram ambos a uma piscadela de olho e, ao voltarem do armazém com um cabo novo, vinham sorridentes e com olhares cúmplices.

Ligaram o cabo às fichas da rede e do PC, confirmaram que o computador ressuscitara e simularam testes à espera que o Evaristo se distraísse. Mal se sentou a atender uma chamada e se virou para os documentos, os dois SIM-PORR enrolaram-lhe o cabo à cintura, passaram-lho pelo pescoço e braços, deram três laçadas na cadeira e quatro nós na secretária. Tudo num instante, à velocidade de uma bicada de vírus sem firewall. O Evaristo, a atender um cliente importante, dos que dão boas comissões nas vendas, não gostou da brincadeira, mas nem parou “…pois sim, cetôr, pois conceteza cetôr, pode ficar descansado cetôr!”

Ao pousar o telefone quis levantar-se, mas estava completamente imobilizado, amarrado que nem um paio de porco preto de Barrancos. Os nós tinham sido obra de especialista, antigo marujo da Sagres! E na Marinha, nó que é nó não é um Evaristo qualquer que o desata. Ia pagar caro o que gozara com os SIM-PORR que, entretanto, zarparam para fim-de-semana com cínicos gestos de adeus e até segunda.
Nem conseguiu agarrar no telefone que lhe caíra ao desligar do cliente sim, cetôr e muito menos usar o computador, pois as mãos estavam a milhas do teclado, tornando impossível qualquer mensagem, mesmo invocando a CAC que tinha em mãos.

Horas depois, acordou estremunhado quando, na ronda da meia-noite, lhe cortaram o cabo avariado que o amarrava. Nem agradeceu ao segurança, pois o sonho com a falsa-sonsa estava a deliciá-lo. Tinha sonhado com ela a despir-se dessa dissimulação e que também despira a saia plissada para se aconchegar a ele e o aquecer no regelado armazém dos cabos novos…


Códigos
SIM-PORR – Sistema Integrado de Informação, Manutenção e Procedimentos Operacionais de Reparação Remota
PIT – Problema Impede Trabalho;
CAC – Chefe a Clamar;
MIJ – Muito Urgente – Impede Jogos.



© Manuel A. Madeira
Lisboa, 25.Set.2008

Sem comentários: