quarta-feira, 26 de junho de 2013

De olhos nos olhos até ele fugir

Contito

Reedição
Publicação original em 8.Agosto.2008

Ele viu-a primeiro, isso é seguro, pois ela estava num grupo que, àquela distância, não tinha nada de discreto. Seria impossível não dar por ela.

Bem constituída, testa alta, muito alta mesmo, talvez até demasiado alta para as preferências que ele já confessara à sua Maria nos momentos mais só deles. Larga de peito, com um tórax bem constituído a sugerir uma força pujante que em certos momentos seria capaz de deitar um homem por terra, exausto, incapaz de se ter em pé.

O pescoço robusto acabava numa cabeça longilínea, braquicéfala, cogitou ele relembrando a sua velha antropologia, a que uns lábios muito carnudos davam uma imagem de forte determinação. A cor da pele destoava da dos outros membros do grupo, mas nos dias de hoje isso não é surpreendente e ele sabe muito bem que só cérebros mais encarquilhados fazem disso cavalo de batalha, que não é o seu caso, cosmopolita de vários continentes.

Sendo homem sério, fez por ignorá-la e continuou no seu caminho. Porém, pouco depois ela também deu por ele, observou-o de alto a baixo e a certa altura foi um olhos nos olhos de meticulosa e mútua medição. Ela avançou uns passos aproximando-se dele.

Passos tímidos, mas avançou. E ele, atento, não deixou de registar esse avanço e logo ficou de sobreaviso. Treinado nas lides académicas como observador-participante, não podia deixar de registar aquele tentar, tomar o pulso e avançar. Avanços de olhos nos olhos, é bem sabido, têm que se lhes diga…

Ele olhou à sua volta, não gosta nada de surpresas, mas a verdade é que se sentiu exposto. Avesso a passos em falso, procurou alguma protecção. Não quer ser objecto de suspeições, apesar dos olhos nos olhos. Os seus limites estão definidos, a Maria dele pode estar descansada! Todavia, sentindo-se a descoberto, preferia alguma escapatória discreta em vez de lhe virar costas, o que não é muito o seu jeito. Hesitou, pois.

De um dos lados, ficaria na linha de mira, pois era para ali que ela se estava a encaminhar com aquela determinação que ele já antevira dos seus traços fisionómicos. E do outro lado não havia nada que o encobrisse ou quase nada. Ele é um homem de família, disso não haja a mínima dúvida.

Obviamente que observa quem o rodeia, mas, não sendo santo também não procura nem aceita situações ambíguas. Daí a começar a recuar foi um instante. Não, nesta não me apanhas, era o que faltava! Queria uma barreira, fosse o que fosse, algo que se interpusesse entre ambos, pois desde que ali chegara que ela não deixara de o fitar continuamente. Interessada, pois claro, primeiro ao longe e depois, sem despegar os olhos dele, avançou decidida.

Ele estava à beira do Guadiana, rodeado por uma paisagem bucólica, a meia dúzia de metros da água e a magana da vaca não parava, correndo na sua direcção. Não eram mais de cinco ou seis vacas e bezerros, mas não era companhia recomendável, especialmente a correrem a bom correr e quase a alcançá-lo. Ele só pensava que azar o meu, vou levar umas cornadas, sei lá se é gado bravo!

Primeiro fugiu para a cerca de arame, mas quando se apercebeu que era para aí que os animais se dirigiam fugiu também dali. Fugiu para o rio e passou-lhe pela cabeça que teria de se atirar à água se queria ficar a salvo. Mas teve sorte.

No último segundo, antes de ter de entrar rio adentro, a vaca guinou e trotou noutra direcção. Afastou-se dele, intruso nos pastos dela, correndo a caminho do resto da manada, do outro lado da colina. Depois do susto respirou fundo, o coração acalmou e lá continuou ele a caminhada Guadiana abaixo.

Barragem de Pedrógão do Alentejo, 16 de Fevereiro de 2008

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