Contito Infantil para Adultos
No tempo em que os animais
falavam…
Era uma vez um padre de Fátima que
disse a um jornal que havia uma epidemia de mentira em Portugal (http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1328387&idCanal=62).
Como não tinham lido o tal jornal, e sabendo que quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, os animais da Arrábida ficaram incrédulos. Depois ficaram atarantados e finalmente cheiinhos de medo. E se a epidemia os atingia?! Se ela chegasse à Arrábida, como iam acreditar nos morcegos, colegas tão recatados, e nos bichos-de-conta, sempre tão certinhos?! Instalou-se um clima turvo, com as cigarras a meter a viola no saco e as águias a olharem com sobranceria para os pardais e outra arraia-miúda da bicharada da Serra da Arrábida.
Com um ambiente de cortar à faca,
os conflitos dispararam. Houve até uma cotovia que desmentiu uma perdiz que
tinha dito que ouvira uma sanguessuga dizer que um caracol tinha badalado que
uma toutinegra garantia que o superior do padre desencadeara uma campanha para o
retirar de Fátima. Retirar, na gíria soviética e eclesiástica, é reforma
compulsiva insusceptível de recurso. Ou seja, quem se lixa, lixado fica e bico
calado, que, se pias, mais te lixas. Outra versão dizia que aquilo fora uma
manobra táctica do padre para uma saída à Alexandre Herculano. Livrava-se do
desgastante mediatismo de Fátima e ia para o sossego do Convento da Arrábida, de
onde faria sermões aos animais. Sobre a verdade.
Mas seria mesmo verdade? Uma
epidemia de mentira?! A incerteza contaminou toda a Arrábida. Até que uma lebre
viajada, em conversa com pombos-correios de longo curso, que tinham falado com
cegonhas de Leiria, chegou à conclusão que havia coisa. Não sabia o quê, mas
parecia o folhetim do banco que tinha andado nas bocas do mundo e fora cair na
boca do lobo, um partido que o abocanhou. Se havia coisa, tinha de se tirar a
limpo!
Foram mandadas mensagens de
correio electrónico por toda a Arrábida e do PIFAS, Portal Internético da Fauna
da Arrábida Solidária, saía flash
atrás de flash com Newsletters com as últimas das últimas e
também simples News a convocar todas
as espécies. A convocá-las e a pô-las de pé atrás, coisa a que nem todos
acederam de bom-grado, especialmente os caracóis, as cobras e as lesmas, que
sentiram a discriminação a pairar. Pavões e gaviões, insectos rastejantes e voadores,
rolas e pirilampos, carraceiros e grifos, todos foram avisados. Até o ronha do
cuco foi notificado in extremis, quando
se preparava para chular mais um ninho de codornizes para os lados de Oeiras.
Até as SMS ferviam! A tal ponto
que num operador nacional de voz e dados, o director de infra-estruturas andou
uma semana com tomas de seis horas em seis horas de um pacote terapêutico de diazepam
e clorodiazepóxido entremeado com arinto loteado com touriga nacional a 60/40.
A esposa, à noite, completava o tratamento com infusões de camomila enriquecida
com magnésio de malte. Todo esse desarranjo taquicárdico porque não via como
pôr água na fervura dos servidores, encaminhadores e dos próprios protocolos e cabos
de fibra óptica, material que atingiu febrões de 44º C de tanta mensagem. Se
não os arrefecia, ainda havia um blackout
e alguém ia pagá-las e ele ainda deve metade do BM ao banco…
E porquê todo este frenesim
comunicacional? Uma simples mensagem classificada e cifrada em código SEGNAC que o
protocolo assimétrico de 128 bits descodificava:
Urgente Stop Muito Secreto Stop Reunião
Comité de Planeamento Animal Arrabidal de Emergência Stop Ponto Único Agenda
Stop Planear investigação à epidemia de mentira de Fátima Stop Assinado Stop
Grilo Pimpão Stop Stop.
Rigorosas investigações do Departamento
de Medição de Radiações da ANACOM, Autoridade Nacional de Comunicações, concluíram
que, desde 1755, nunca as frequências radioeléctricas tinham sido tão frequentes.
Ficou a saber-se que houve bytes que
se atropelaram e que chegaram a alcavalitar-se uns nos outros e certas mensagens
eram incompreensíveis porque nos engarrafamentos houve pacotes de dados que foram
esmagados e nem em hexadecimal se percebiam.
Mas a sorte esteve do lado dos
honoráveis representantes dos animais da Arrábida, pois a convocatória chegou a
tempo. O Comité de Planeamento Animal Arrabidal de Emergência reuniu à sombra
da piscina das instalações agrícolas do novo palácio rural de Casais da Serra.
No projecto aprovado pelo Município a piscina tem o nome de tanque de rega. O
Comité não percebe porquê, mas não é da sua competência sabê-lo. O que é da sua
competência é a investigação à epidemia de mentira de Fátima e está a
planeá-la. A reunião decorre há várias horas.
A reunião é importante e o
planeamento da investigação à epidemia de mentira é muito, muito urgente. Os honoráveis
representantes dos animais da Arrábida estão reunidos há horas. Muitas horas.
Horas esquecidas a ouvir o Grilo Pimpão. A maioria dos animais já está com
olhos de carneiro mal morto à mesa de reuniões e o Grilo Pimpão continua a perorar.
Primeiro dissertou sobre a questão prévia dos factos presuntivos e do direito supletivo
aplicável, fez um parêntesis sobre doutrina contingencial e finalmente abordou a
integração com a jurisprudência comparada europeia.
O Mocho Sábio vai trocando discretas
SMS com a namorada a combinar umas cenas para o fim-de-semana. A Lagartixa
Gervásia, enregelada porque não apanha pinga de sol há horas, pousou os queixos
na mesa e parece em hibernação intermitente, abrindo ora um olho ora outro. O
Sapo Relator, a pretexto de verificar o som do gravador bifuncional de onde mais
tarde verterá aquela lengalenga para a acta, vai ouvindo hip-hop e ruminando na rã das pernas elásticas que anda a fazer-se-lhe
desentendida.
O Presidente da Mesa, o Grilo
Pimpão, esse, para abreviar, ainda arengou sobre ambivalência prospectiva e disse
umas lérias sobre três cenários putativos de uma estratégia tangencial.
Pôs o assunto à discussão dos
membros do Comité e, quando o pato-mudo levantou uma asa para comunicar uma
coisa, o Grilo Pimpão franziu o sobrolho. Com rosto crispado e voz de Napoleão
em Santa Helena, disse-lhe que fosse breve “…
não temos todo o tempo do mundo!”.
Após horas e horas de sucessivos
arrazoados, de reflexões às suas próprias prédicas e de uma tirada retórica acerca
das decisões que se impunham, o Grilo Pimpão encerrou a sua bela reunião. Estava
ufano. Tinha mostrado à bicharada o que devia ser mostrado e nem reparou que só
havia dois animais acordados: ele e o Sapo Relator, este só com um olho aberto…
e já meio fechado!
Esta reunião de Comité de
Planeamento Animal Arrabidal de Emergência teve um sucesso inquestionável. Na
acta foi registada a participação entusiástica dos honoráveis representantes
dos animais da Arrábida e obnubilada a sua abstinência geral que, aliás, fora superiormente
orientada pelos contundentes arrufos do Grilo Pimpão. Foi transcrita para a acta
uma declaração oral de um passarão que pensa que assim terá um futuro melhor.
Dela consta que Sua Excelência evidenciou uma fina sensibilidade para as
relações humanas, demonstrou uma notável perícia comunicacional e que tem uma excepcional capacidade de síntese.
Quando o Grilo Pimpão e o Sapo
Relator iam saindo, este perguntou-lhe: “Então e o planeamento da investigação
à epidemia de mentira de Fátima, achas que a bicharada aderiu?!” Obteve uma eloquente
resposta esquizofrénica:
-
Sem a
mínima dúvida, o que eles precisam é de um líder forte, que lhes ilumine o
caminho!!! Ficaram a saber quem manda…
Tudo isto aconteceu no tempo em que os animais
falavam… nos nossos dias tudo é diferente.
Manuel A. Madeira
Lisboa, 15 de Maio de 2008
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