Antónia acordou assarapantada com a brusquidão com que a porta se abriu. E com o filho a atirar-se para cima dela. Meloso, eufórico e extasiado. Anda assim há uns dias.
Ela mal passara pelas brasas neste sofá de fim de tarde onde queria encerrar o dia pesado. Passara toda a semana no estaleiro e o atraso na obra tinha feito mossa. Chegara a casa exausta, rabugenta, já tarde e o jantar por fazer. Recambiou o marido para a cozinha, que era a sua vez de chorar com a cebola, de picar os alhos, os dedos e os tomates, e de garantir o tamboril malandrinho.
Quando ele saiu da sala, respirou fundo, afundou-se no sofá e ligou a televisão no canal soporífero. Certo e sabido que, em segundos, o Morfeu toma conta dela. É o costume dos dias pesados: canal dos mares, almofada redonda nas costas e almofada grande na nuca e no instante seguinte só ouve o tilintar da cozinha como se viesse das profundezas oceânicas. Um quarto de hora assim e renasce… pronta para o seu Zé, no fogão ou no que calhar.
Mas hoje foi diferente. O filho anda com a cabeça no ar, encantado com a Francisca, aquisição recente, e entrou em casa como um furacão: atirou-se a ela, sôfrego de atenção, de atenção de mãe. E ela abraçou-o. Embora automaticamente, pois ainda estava anestesiada pela soneca interrompida e já um pouco saturada da lengalenga: A Francisca é especial, é única!
O filho repete este refrão, intercalado com a descrição das qualidades, o enaltecer da inteligência, o evidenciar do bom senso. Tudo isto numa rapariga do Norte.
– Mãe, é do Norte e é do Benfica, já viste a minha sorte!? É uma rapariga especial, é mesmo uma rapariga única!
– Sim, filho.
– Oh mãe, não me estás a ouvir… Mãe, ouve lá…
– Sim, diz lá, estou a ouvir-te muito bem…
– Mãe, ela… a Francisca, a minha querida Francisca, é tão bonita!
– Pois é.
– E muito decidida, fez o InterRail o ano passado, sozinha, sem medo nenhum.
– Pois…
– Tem umas notas óptimas, é uma querida com os pais, adora os avós e faz voluntariado em Cascais. Só ela… É especial.
Já ouviu esta arenga um par de vezes, o que a começa a irritar. A Francisca não será má rapariga, isso não, mas Antónia sente que tem de pôr alguma água naquela paixão, não vá o filho ficar como já o vira noutros capítulos. Quanto mais alto é o castelo… lembra-se sempre do dito do Tio Hilário. É verdade que a miúda tem boa presença, não diz Vistes nem Há-des e tem conversas atiladas, mas é uma rapariga normal para a idade e para os tempos que correm. Só os olhos do filho a vêem “especial”.
Decidiu naquele momento que levaria a peito a sua missão de mãe galinha de adolescente embeiçado. Mesmo que lhe doa um pouco, tem de ser, tem o dever de o alertar para evitar rombos emocionais. Adopta uma postura pedagógica, pelo que recapitula o que ouvira nos últimos dias.
– Bom, meu filho, não é má rapariga, lá isso não, mas especial!? É inteligente, pois é, mas também a Mariana e a Joana o eram e foram à vida.
– Mas ela é diferente, mãe, muito diferente!
– Bom, bonita… não, não é feia. Mas nem mais nem menos do que todas as miúdas que trazes cá a casa.
– A Francisca é diferente, é única.
– Querido filho, já sabes, não te quero magoar, mas vamos lá ver se nos entendemos… É boa estudante, desembaraçada e do Benfica, já agora! Tem bom português e é voluntária num hospital. E depois!? O que é que faz dela tão especial, além do nariz empinado?
– Mãe… não sejas tão derrotista, não gostas mesmo nada dela! Não te calas com o nariz… Ela até é simpática contigo!
– Pronto, filho, se tu gostas dela, se estás apaixonado… mas depois não me venhas choramingar como das outras vezes.
– Mas não achas que ela gosta de mim?
– Acho. E achava o mesmo da Catarina, da Mariana e da Joana, mas tu ficas logo assim, obcecado, nem vês, achas que a primeira que te aparece é sempre excepcional, uma coisa do outro mundo.
– Pronto, posso ter-me enganado com as outras, mas a Francisca é diferente, é mesmo especial. Não achas!?
Antónia respondeu com um encolher de ombros e uma careta desconsolada e foi ter com o marido, em retoques finais no tamboril. Encostou-se a ele, pôs-lhe uma mão no ombro e desabafou:
– Oh Zé, temos aí mais uma especial! Já viste a nossa sorte!? Só especiais…
– Especial, esta? Então esta!!! Faz uma cara de enterro à sopa de cação… E diz que a açorda alentejana lhe dá volta ao estômago! Especial, só se for por não gostar de coentros!!! A única portuguesa que não gosta de coentros! Saiu-nos cá uma prenda… Mas que rica prenda… uma prenda especial…!
Manuel A. Madeira
Lisboa, 24 de Junho de 2009
sábado, 29 de maio de 2010
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