terça-feira, 25 de agosto de 2015

Imigrantes africanos e asiáticos, corruptores europeus e paninhos quentes




Não há, nos dias que passam, qualquer dia sem notícias de imigrantes, naufrágios mediterrânicos e fronteiras apinhadas de gente aflita.

A aflição da fome e da morte, da perseguição e da desesperança tem trazido para a União Europeia muitos, muitos milhares de pessoas desesperadas.

Mas a fuga de tantos africanos e asiáticos é também fruto da cumplicidade europeia com corruptas quadrilhas, fingidas figuras de Estado. Disfarçadas de fato e gravata ou em vestido plissado, rapinam os seus países e roubam o futuro a muitos povos de África em parceria com traficantes europeus de vários negócios. Sob o oficialíssimo fechar de olhos dos Estados-Membros da União Europeia e da omnipresente Comissão que a lidera.

Ora a UE, em vez de apenas equacionar estratégias de apoio aos refugiados, tem, primordialmente, de criminalizar e levar a julgamento os "homens de negócios" UE cujas empresas, multinacionais e imperiais, suportam aqueles corruptos, com eles traficam e parasitam os recursos de povos esfomeados.

Até lá restam os paninhos quentes, patrulhas navais mediterrânicas e asilo a conta-gotas, sandes e água de litro e meio no desembarque, cães polícias e lágrimas de crocodilo.


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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Trova ética


Quadras



Ao tacho tão aferrado,
o Relvas pantomineiro
foi em Gaia destroçado
pelo povo marinheiro.


No Clube dos Pensadores
pensou lavar a imagem,
com sócios bajuladores
em ato de vassalagem.


Saiu-lhe a carta furada:
Grândola, trova pujante,
Vila Morena cantada,
denunciou o farsante.


Apupado por estudantes,
Dentro de ti, oh cidade,
com tais versos imponentes
exigindo dignidade.


Aldrabão desmascarado,
a chacota disfarçando,
gaguejou, atarantado,
a balada enxovalhando.


Com um esgar agonizante
e a boca arreganhada,
esfarrapou o belo cante
em voz de cana rachada.


Chegou emproado, pimpão:
negociatas fraternas,
sorrisos, apertos de mão.
Saiu de rabo entre as pernas!




Manuel A. Madeira
21 de Fevereiro de 2013


sábado, 15 de agosto de 2015

Quadras - Três bisnagas



Três bisnagas






Dores nas cruzes, nos artelhos;
e a gota dos joelhos,
os quebrantos à mistura
com os gases e a soltura.


É um rol de amarguras:
enxaquecas e tonturas,
falta de ar, palpitações,
os pecados, ruminações.


O catarro e a espertina,
a pieira matutina,
anemia, pé dormente.
Ai vigor d'antigamente...


A injeção, xaropadas,
três bisnagas, três pomadas,
comprimidos às mancheias,
o azul p'rás odisseias...


A cabeça num novelo;
e a dor de cotovelo!?
Ai os nervos, cataratas;
não há mezinhas baratas!


Enorme fé num milagre,
caçar moscas com vinagre,
mas a santa milagreira
faz vista grossa, matreira.


Resta apostar, jogar tudo,
viver em modo peitudo:
descartar a choradeira,
tornar a vida gaiteira.



© Manuel A. Madeira
11 de Agosto de 2015

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Os pobrezinhos - Uma muito atual crónica sociológica de António Lobo Antunes


Os pobrezinhos






"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria: - Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da menina Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres dinheiro, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"


Por António Lobo Antunes.


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