quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Primeira carta de mãe babada

 

Obrigado Porto Editora

Contito

Costa da Caparica, 21 de Março de 2009

 Querida Mãe

 

Estou a aproveitar o feriado para lhe dizer o que devia ter dito ontem. Há coisas de que não gosto de falar, como já sabe. Ontem quando estivemos ao telefone lembrei-me disto, mas não me saiu… mãe é mãe, e a Mãe percebe. Felizmente! Já sabe que desde miúda só lhe dou notícias por escrito, não sei porquê, mas, que hei-de fazer!? Gosto mais de lhe escrever a dar notícias, assim saboreio melhor o que lhe digo, as boas notícias.

Lembra-se quando lhe comuniquei que ia assentar, que eu e o John íamos juntar os trapinhos, isto ainda em Los Angeles? E lembra-se quando lhe escrevi a carta manchada de lágrimas, uma carta especial, a minha primeira carta de casada? Hoje é a mesma coisa, só que esta é a minha primeira carta de mãe babada.

Pois quero dar-lhe notícias! E também quero pedir-lhe um favorzinho. Mas só depois das notícias. Cá vão, à americana, as duas notícias, a boa e a má.

A boa, estou grávida, Mãe, e estou tão contente! Está tudo bem, o bebé e eu, por aí nada a registar, mas o John parece maluco. Está encantado, às vezes nem sei, olho para ele e sinto-o ainda mais feliz do que eu, até gagueja. E o português a fraquejar, ele que já falava tão bem. Deve ser do nervoso.

E eu, que podia ter alterado o meu comportamento, ficar impertinente ou piegas, tenho estado óptima, até os enjoos suporto bem. Nem tenho tido desejos, com uma excepção, valha a verdade! Bom, não vale andar com rodeios com a Mãe. O John, assim que me viu grávida, abraçava-me a toda a hora, sempre colado a mim, beijocaria até mais não, só que não passava daí…

Tive de lhe dizer que gravidez não é doença e ele nada! Então insinuei que há coisas que continuam a fazer falta, embora com mais cuidado e ele continuou a fazer-se desentendido. Quando esgotei os argumentos e a paciência, carreguei com ele para o ginecologista numa consulta de rotina, depois, claro, de ter telefonado ao médico, pedindo que lhe lesse a cartilha.

Resultou, Mãe, resultou! Muito a medo, lá se decidiu, com mil cuidados e acho que até fica surpreendido de eu não entrar em trabalho de parto a partir de certa altura. Tenho de insistir com ele, lembrar-lhe o que o médico disse, que não há perigo, que com cuidado tudo corre bem. Lá acede aos meus pedidos, coitado, embora não pareça muito convencido quando lhe digo, a sorrir, que há contrações e contrações…

Bom, agora a má notícia. Mãe, depois de virmos dos States, o meu querido John já nem parecia um gringo da costa leste, tinha o sotaque, isso compreende-se, mas falava um português muito aceitável. Os nossos colegas da Nova não paravam de o elogiar e agora, de repente, parece que teve uma recaída. Até acredito que a gravidez tenha tido alguma influência e que a expectativa de ter um filho lhe baralhe os neurónios! Tanto erro de português, tanto disparate!

Mãe, veja só a amostra: o John diz "comprastes" e "fostes" a torto e direito. E "conssíígamos" ou "bêêbamos" são outras das suas barbaridades. Ponho-lhe o Conjugar dos verbos do Priberam debaixo do nariz e ele continua na asneirada. Que desespero!

A Mãe é que o podia ajudar, agora que moramos mais perto. Vinha passar uns fins-de-semana connosco e nem que o pusesse a cantar as palavras correctas em tom de barítono...

A sua experiência de Professora certamente que lhe dobraria a língua. Em pouco tempo, o meu querido John havia de perceber que, na língua portuguesa, não há quarta pessoa do singular! E que viste e percebeste são as formas correctas da segunda pessoa do singular, a especializada no tu. Já agora, também o podia pôr a cantar tenhamos, vejamos ou compremos, imitando a voz linda da Ana Bacalhau, dos Deolinda, até ele os dizer com o mesmo delicado cuidado com que faz certas coisas…

 

Com o amor

da sua filha que precisa muito de si,

Francisca

 

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@ Manuel A. Madeira