sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A Primeira Carta de Casada

Contito Los Angeles, 4 de Julho de 2007
Querida Mãe É com muito prazer que lhe escrevo, sempre que escrevo à minha querida Mãe é uma felicidade, como sabe. Desde menina que escrevo cartas. Mal a D. Maria do Carmo, a minha saudosa professora da primária me ensinou, primeiro a desenhar letras, o simples o, o e em forma de laço e o a que tanto trabalho me deu e tantos bicos de lápis partiu. Depois, a junção de letras em palavras, pequeninas umas e gostosas outras, foi, como a Mãe muitas vezes me lembra, um início muito bonito de uma vida de cartas de amor. E lembro-me muito bem, querida Mãe, que foi a si que escrevi a minha primeira carta, demorou-me dois dias, bem sei, e tinha alguns erros... Foi a primeira de muitas, bem sabe.
Após tantas e tão ternurentas cartas, todas ainda guardadas no baú que era da avó e que é o meu cofre secreto, a Torre do Tombo dos meus amores epistolares, escrevo-lhe agora uma carta especial: a minha primeira carta de mulher casada.
Não é todos os dias que se escreve a primeira carta de casada. Por isso, Mãe, lhe quero dizer como estou feliz. Tenho um marido adorável. Adoro-o e ele a mim. Mãe, este doutoramento em neurociências fez de mim uma mulher realizada. Realizada, porque estou a trabalhar no que gosto, na magnífica equipa que tenho a sorte de integrar e realizada por ter um marido excepcional com quem espero ardentemente viver toda a minha vida.
Mãe, o John é o amor da minha vida. Depois dos meus devaneios de juventude, dos meus desaires experimentalistas na América, encontrar o John foi uma sorte e uma felicidade. Passados os tempos turbulentos dos ajustamentos mútuos, posso hoje dizer, com a segurança que a vasta “expertise” que a Mãe não conseguiu inibir, que fiz muito bem em casar e em casar com o John.
É um homem adulto embora ainda não esteja nos trinta, e, como sabe, um cientista meticuloso, trabalhador incansável e um amante de cuja generosidade só não falo por pudor. Mas sempre lhe digo, querida Mãe, que temos uma ligação muito, muito forte, qual betão pré-esforçado, em que o cimento são os nossos interesses intelectuais e a estrutura das vigas-mestras é constituída pela nossa intimidade, a nossa parceria horizontal, a nossa sempre inovadora sede um do outro. Mãe, o John é o homem da minha vida, já sabe, mas mexe-me com os nervos quando se põe a falar português, que aprendeu em pouco tempo, diga-se a verdade, porém, tem a irritante dificuldade em acertar no género dos substantivos.
Mãe, este gringo dum raio, mal abre a boca, tem que errar sempre no género das coisas. Deu-lhe para ali, ele que é quase perfeito. Pois o meu querido John às vezes parece-se com certos portugueses: não é capaz de meter naquela cabeça loira que grama do género feminino só há no Brasil, pois a grama deles é a nossa relva, a dos relvados dos campos de futebol. Não sabe que quando se trata de unidade de medida de massa, o peso das coisas, é do género masculino. Uma pessoa tem mais ou menos quinhentos gramas, isso ele nunca diz! Engana-se sempre… Mãe, por favor, arranje-me aí uma mnemónica para eu dar ao John, para que ele nunca mais diga bife de duzentas gramas, nem encomende robalos de um quilo e quinhentas!!!
Dicionário não mande, que já lhe ofereci dois, um de sinónimos! Até já lhe fiz uma cópia da página com o Grama na primeira linha, em que sublinhei a abreviatura s. m. de substantivo masculino. Com amor Da sua filha cheia de saudades Francisca
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