sábado, 5 de junho de 2010

Sabor a sabores

Contito



Grande caminheira, não perde a oportunidade de ir petiscando o que apanha pelo caminho. Laranjas aqui, castanhas ali, uma ou outra bolota e medronhos. Muitos medronhos, um pouco por todo o país. E figos, quando bem maduros, são sempre muito apreciados. Colhidos sempre que a mão lá chega são sempre bem acolhidos. Também usa mãos alheias, que alcancem mais alto, se for o caso e se houver uma alma caridosa.

Por isso, ao marido ela sabe a medronho, que é o que mais come nas suas andanças por serras, vales e trilhos. É o paladar mais complexo, pois além do flaveur tipicamente medronhento, as suas células olfactivas também são amalgamadas com o álcool resultante da fermentação dos medronhos. Sabe-lhe portanto a medronho e a aguardente medronheira, de acordo com o grau de maturidade destes frutos.

No Douro, onde eles amadurecem mais tarde e não têm tanto açúcar, este não se transforma tanto em álcool e portanto, nos domingos à noite dos regressos do Norte, o marido só apanha com o bafo do medronho-fruta. Já nas caminhadas pelo barrocal algarvio, com medronhos mais doces, o hálito fica mais tocado pela fermentação dos medronhos e há um forte travo a aguardente medronheira de 19 graus. No pino do verão acontece mesmo ele próprio ficar um pouco pedrado. É que a elitização medronheira chega a atingir os 25 graus.

A razão de tanta caminhada tem uma explicação simples: além de lhe ser agradável e saudável, contém a sua tendência para a celulite, essa tão desagradável inflação adiposa. Sendo frugal, é um caso clássico de engordar só com a água que bebe. Não é gorda, também não é esquelética, é mais um meio-termo rechonchudo, nas palavras do marido, um grande apreciador de torresmos.

Para que essa água não lhe fique a chocalhar no estômago come muitas saladas, muita fruta e pão escuro. Um ou outro ovo e mais peixe que carne, que o colestrol tem de ser contido nos parâmetros das magras. E para não criar patologias, bulimias ou anorexias intercala estes salutares hábitos com uns queijitos que a colega de Rabo de Peixe lhe traz todas as vezes que lá vai. Também trata das alheiras que o cunhado lhe oferece sempre que Chaves lhe fica em caminho. Nestas alturas a água provoca-lhe uma restolhada abdominal desconfortável.

Restolhada ruidosa, mais ruidosa que flatulosa, verdade se diga. Que tem, todavia, de compensar, pois encontrou um remédio santo para esta turbulência digestiva: branco Antão Vaz. Um copito, quanto muito dois, só pisa o risco quando a alheira é mais pesada. Se são alheiras com muito cravinho ficam com um sabor próprio mas também arrastam as digestões, o que se reflecte no paladar com que fica. Nestas alturas ao marido sabe-lhe a alheira com um acentuado travo acidulado a carvalho francês, exactamente o aroma descrito no contra-rótulo do D. Vaz. Heranças… diz ele, com os olhos a piscarem de gulodice!

O queijo da Ilha, especialmente quando lhe chega às mãos em meia-cura, já não vai lá com o Antão Vaz. Tendo uma preferência há muito estabilizada pelo queijo da ilha com alho e salsa, é com prazer que nestas alturas se vira para os tintos. Os do Tuela VQPRD fazem boa companhia. Mais adstringentes, com mais corpo, compensam bem o aroma da salsa e entrosam às mil maravilhas com o amargor do alho. E dá-lhe um hálito que regala o seu querido Francisco:

– Hoje sim, estás mesmo de meia-cura: um fino hálito carrascão com um prolongado fim de boca, cujas tonalidades a frutos silvestres fazem de ti uma rica cabrita montesa…

– Depois, não te queixes!!!


Manuel A. Madeira
Lisboa, 30 de Janeiro de 2008

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