sábado, 6 de novembro de 2010

Como se faz um monstro [ III de IV]

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Numa tarde d'Outono, a sonolento trote
Um macho conduzia em cima do albardão,
Já coluna da Igreja, o novo sacerdote,
O muitíssimo ilustre e digno padre João.
Ao entrarem na aldeia os dois irracionais,
Dos foguetes ao grande e jubiloso estrépito
Um velho recebeu nos braços paternais,
Em vez do alegre filho, um monstro já decrépito
Que acabava de vir das jaulas clericais.
Que transfiguração! Que radical mudança!
Em lugar da inocente, angélica criança,
Voltava um chimpanzé, estúpido e bisonho,
Com o ar de quem anda alucinadamente
Preso nas espirais diabólicas dum sonho.
Seu corpo juvenil, robusto e florescente,
Vergava para o chão, exausto de cansaço:
Os dogmas são de bronze, e a lã duma batina
Já vai pesando mais que as armaduras d'aço.
A ignorância profunda, a estupidez suína,
A luxúria d'igreja, ardente, clandestina,
O remorso, o terror, o fanatismo inquieto,
Tudo isto perpassava em turbilhão confuso
Na atonia cruel daquele hediondo aspecto,
Na morna fixidez daquele olhar obtuso.
Metida nas prisões escuras de Loiola,
A sua alma infantil, não tendo luz nem ar,
Foi como os rouxinóis, que dentro da gaiola
Perdem toda a alegria e morrem sem cantar.



A velhice do padre eterno
Guerra Junqueiro
1885

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