terça-feira, 28 de abril de 2009

Lágrimas de Natal

Contito Augusto José, farto de uma vida alcatifada, sem arranhões nem sombra de sol a sério, foi à net à procura de qualquer coisa animada, sem sofá nem horas certas. Espreitou, espreitou e torceu o nariz, voltou a meter o nariz e, com curiosidade e a pulga atrás da orelha, mas lá foi. Aventurou-se nas aventuras do CAOS e, mesmo de pé atrás, calcorreou trilhos, serras e estradões com pisos de bom pisar. Gostou. Até gostou da saída tardia, entretida em galhofas de quedas deste e daquela, petiscos aqui e tintos acolá, das distâncias mal calculadas e dos cálculos renais que obrigaram a uma certa neutralização que deu em minilização com amendoins e tremoços. Gostou ainda mais das paisagens, das plantas que nunca vira, das águias altaneiras e das cagadelas rasteiras de formatos que nunca imaginara. Nem pisara... Gostou especialmente da entreajuda na travessia dos barrancos, achou piada aos fósseis que não sabia incluídos no programa, ouviu histórias de viagens e também contou as suas secretas fobias a lagartixas e ao pêlo na venta da sua querida sogra. Tanto gostou que nem lamentou o arame farpado que lhe fez dois rasgões nas calças vincadas de propósito para este outdoor inaugural: um aventureiro radical tem os seus troféus, disse para os seus botões... Gostou e voltou. Com a Maria, sua esposa. Se o marido ficara encantado, ela estava extasiada. Toda a caminhada se sentiu entre velhos amigos. Uns recomendavam roupa leve, outros que não voltasse de ténis lisinhos e outros ainda diziam-lhe que era fotogénica, mesmo quando torcia o nariz aos fotógrafos deliciados com o seu chapéu com pompom semelhante a um dióspiro madurinho. Ao almoço ofereceu laranjas e salmão fumado, provou batata-doce assada e bebeu um chazinho de gengibre que a livraria de todas as maleitas das vias respiratórias... Descobriu que se subisse devagar chegava tão alto como os mais atléticos e que andar a quatro é tão natural como comer medronhos e amoras silvestres. E deu por si a pôr o fundamentalismo na mesma algibeira em que meteu três laranjas que pularam da árvore para a sua mão por obra e graça do companheirismo. Estava tão encantada com o acolhimento que lhe tinham proporcionado que, ao jantar, escancarou o coração àquele grupo de gente tão diferente e tão igual. Decidiu retribuir a hospitalidade caótica que a tinha feito sentir-se uma caminheira veterana. Poetisa repentista de meia tigela, como se intitula aos amigos mais chegados, depois dos torresmos bem regados, dos cogumelos gratinados bem regados, do painho bem regado, dos alimados bem regados e das opiparamente regadas tranches de mero, pediu para dizer uns versos. O marido ficou apreensivo. Conhecia muito bem aquela veia e receou que, como de costume, depois de dizer as rimas, as regasse para comemorar o sucesso... e ele sem carta de condução! Maria, sem se dar conta do olhar ansioso do marido, pigarreou quando sentiu que o grupo dava sinais de a querer ouvir e, desembaraçada, bem regada, trepou para uma cadeira. Olhou à volta: os talheres silenciaram-se aos poucos e os sorveres de café quente lá se foram esboroando... Aguardava por completo sossego quando ouviu o vozeirão lá do fundo. Um companheiro alto e forte, um verdadeiro caótico XXL, muito sorridente e também já bem regado, brandiu um inapelável: - Então, isso é para hoje ou quê?! Maria não esperou mais. Com os olhos muito luminosos e numa solenidade bem regada, levantou os braços como maestro a clamar por concentração. Com o silêncio instalado, iniciou a declamação do hino que, a partir do meio da tarde, lhe tinha brotado da novel alma caminheira: Por campos e serras fomos andarilhos. Começo tardio, que horários são doentios. Alcatrão e estradão, cãibras e trilhos, Mochilas com pão e água e frutos luzidios. Petisco há sempre, é caótica energia, Amêijoas e pataniscas, nacos ou tamboril. Com tinto carrascão ou branco malvasia De boas talhas em mesas de malgas mil. Grandes debates, sérios e a folgar, Projectos e desafios, caruncho e seu tratamento. Açordas e caldos, receitas a marinar, Ervas não são tempero, são comida de jumento. Para dormir, campismo, pensão e hotel, Bungalow e tenda, amizade a partilhar. Noite linda, saco-cama, camarata ou dossel, Oh CAOS, contra a rotina, marchar marchar!!! O grupo caótico aplaudiu de pé até as mãos doerem mais que pés com bolhas e fez repetidos brindes à inspirada poetisa, que foi longamente abraçada como caminheira vitalícia do CAOS eterno. Augusto José, o Augusto José da Silva Natal de nascimento e Grande Natal para as do pronto-a-vestir, orgulhoso da sua Maria, verteu duas lágrimas emocionadas. Lágrimas cristalinas como o branco do Redondo que regara os deliciosos torresmos, dera ao painho um paladar celestial e convertera as tranches de mero num marco histórico do CAOS, tais as marcas que deixou num mero jantar de fim de caminhada! Manuel A. Madeira Lisboa, 23 de Dezembro de 2008 «»

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