quarta-feira, 18 de abril de 2012

Pastor de rebanho pobre


Contito

Reedição
1ª edição: 8.Agosto.2008



Tanta paróquia boa neste santo Portugal e logo vim parar a uma pouco bafejada pelos favores divinos, o que torna complicada a vida de um pastor full-time ao serviço de Deus.

É uma cruz que carrego por penitência, só para Sua glória e a bem da salvação das almas do rebanho. É uma paróquia complicada. Muita despesa, o rebanho é pendular, só cá pára para dormir, poucos casamentos e baptizados e há bairros sem condições.

Os meus colegas mais novos lá se vão safando, são professores, médicos, jornalistas. Mas a crise paira… Já não há as senhoras amigas da igreja como quando iniciei o pastoreio. Vinham tratar dos paramentos, do arranjo das estatuetas dos santos e arcanjos, dos anjos e querubins. É de inteira justiça dizê-lo, os altares, os nichos e as estátuas estavam sempre impecáveis.

As senhoras mandavam as criadas limpá-los e lavar-lhes as roupas e as rendas e até da minha roupita tratavam. As criadas trabalhavam com gosto, por amor à fé, e ficava tudo num brinquinho. E as famílias tradicionais, com muita devoção, nunca se esqueciam de mim.

No Natal, Páscoa e assim, tinham sempre uma atenção, era um costume muito antigo. Convidavam-me lá para casa, onde eram servidos perus recheados, perdizes na púcara, bons ensopados no domingo de Páscoa e um vinhito e uns licores de bradar aos céus.

Seguiam-se as divinais sobremesas de papos de anjo, toucinho-do-céu e barrigas-de-freira. Eu e o senhor Cabo da GNR apreciávamos especialmente estas barrigas. E ficávamos muito agradecidos às almas caridosas que nos acolhiam no seu seio, que assim tinham as graças do Senhor.

De vez em quando lá vinha um cântaro de azeite, que também se gastava muito nas candeias! Um garrafão do produtor, um chibito ou um bacorinho também calhavam no seu devido tempo. E uns ensacados. Fruta, era a que a terra ia dando.

Ainda me lembro como as coisas eram direitas, todos sabiam o seu lugar, sem as confusões de hoje. Os Santos não invejavam Deus, os Arcanjos não eram gananciosos e os dogmas eram-no até demais.

Mesmo a Santíssima Trindade não se metia em especulações teleológicas. Agora é um fandango. O senhor Wojtyła, homem esclarecido, decidiu que não havia inferno. E eu aceitei, por amor ao Senhor.

Larguei essa venerável arma com que aspergia os pecadores confessos e os que eu via pelos caminhos tortuosos da luxúria, da pedofilia e da gula, os que andavam à beira da perdição, na corda bamba!

A crise tinha de dar nisto, eu bem sabia! Maus exemplos nos jornais, ateus no governo e poucas-vergonhas na televisão, é no que dá… Agora, a santidade que sucedeu à sumidade, mal se apanhou no poleiro, logo decretou que sim senhor, claro que há, claro que há inferno. É complicado, em que é que ficamos?!

Eu não usava muito, mas às vezes dava-me jeito: servia para esconjurar uns quantos impenitentes e, com a casa mais composta, sempre se ouvia tilintar um pouco mais nas oferendas ao Senhor.

A sociedade também está esquisita, não há humildade, há muito dinheiro em mãos de gente que não sabe o que custa a vida, que nunca trabalhou no duro e há tanta falta de fé... Também há a crise de vocações e para estar neste ramo é preciso muita, muita vocação!!!

Tal como no tempo do meu colega António Vieira, apascentar um rebanho pobre é complicado. Aqui é que o inferno me era útil. Era uma espécie de entidade reguladora, assustava, mesmo que depois as ovelhas negras se fizessem desentendidas…

Sempre refreava a preguiça, a soberba e o tráfico de droga que são pecados, antigos e novos, mas de pedra e cal na doutrina celestial. Numa perspectiva mais teológica, também sou do tempo em que presbíteros ou acólitos e monsenhores, cónegos ou diáconos, para seduzir quem avaliava, para subir na vida, não entravam na competição desenfreada em que hoje estamos atolados.

Respeitavam a hierarquia sagrada e se não chegasse a sua vez, paciência! Só a comunicação social eclesiástica, que propaga a verdade do Criador e não as ambições terrenas, é que não noticia as guerras intestinas entre iguais ou até nos níveis mais inferiores, sempre que algum prelado é chamado de volta ao regaço do Senhor.

Chega-se ao extremo de, mal se sabe que anda com a glicemia avariada, o colesterol de pantanas ou que as transaminases estão a dar de si, logo temos campanhas info e contra-info. Fazia falta um pouco mais de omnipotência… para impor respeito.

Algumas regras de simples bom-senso faziam falta, mas para cumprir mesmo, que a benquerença, o despojamento e o amor ao próximo estão em fim de estação, já ninguém lhes pega. Qual é a lei de Deus que permite que um fumador seja promovido a cardeal?! Pois consta que o senhor cardeal fuma muito, coitadinho do senhor cardeal que Deus guarde.

Como ele ainda é dos antigos, terá sido assombrado pela luz das trevas, se calhar é o seu braseiro terreno, que Deus lhe perdoe! Andam aí uns hereges a dizer que com o que ele fuma num dia dava para matar a fome a uma família de oito pobrezinhos, incluindo os velhotes, claro, que também são gente!

E também já me chegou aos ouvidos, mas eu nem quero acreditar, que um conhecido judas, dos que vai muito à televisão, o acusou de delapidar num mês, só em tabaco, o que daria para comprar livros para uma turma inteira de meninos de uma Missão em África. Ele há gente muito má, falam sem pensar na dignidade dos cargos. Eu, se tivesse o dinheiro que ele gasta por ano em tabaco, mandava era pôr um jacuzzi na minha casa de banho. Por causa da coluna, faziam-me bem umas hidromassagens. Tenho hérnias. Discais.

Paróquias há umas melhores que outras, não podia deixar de ser, e por isso são muito disputadas para engrandecimento do Senhor. A minha está sempre em apertos, mas não me queixo, tenho uma vida tranquila. Cumpro calmamente as obrigações eucarísticas da manhã e à tarde dou uma volta pelo redil.

Há ovelhas tresmalhadas numa rua de má fama, mas é gente de fora, se calhar até são ilegais. Outros casos vão-se amparando com a palavra do Senhor e a esperança no Além. Almoço tranquilamente, do que nem todos os meus colegas se podem gabar, pois em certas paróquias é um martírio, sempre num rebuliço, as matinas, a encomenda das almas, as missas à pressão, quase automáticas, mais valia porem lá um robô ou o Santana Lopes, que ia dar no mesmo.

Voltando à minha paróquia por Ele abençoada com sossego, ia eu a dizer que é também tranquilamente que faço as minhas orações depois de almoço. Sem pressas, com todo o tempo do mundo. Vou ser franco, passo pelas brasas entre orações… pronto, confesso por respeito ao sagrado dever de verdade, faço uma sesta. Não é pecado, acreditem, já confirmei.

Como se vê, tenho tido uma dura vida ao serviço do Senhor nesta paróquia de Cristo e por Ele esquecida. 24 horas por dia dedicado ao meu rebanho, tenho é esta amargura de sua eminência não atender os meus penitentes apelos ao reforço da verba mensal. Se é esse o calvário que Ele, na sua magnânime rectidão me impôs, suporto-o com esfuziante alegria para expiação dos meus pecados.

De resto, tenho pequenas compensações, as ovelhas tratam-me bem, são pessoas delicadas, também não havia razão para não serem assim comigo! Todos sabem que rezo missas a quem mas pede e enterro toda a gente com dignidade ecuménica, judeus e anabaptistas, jeovás e agnósticos. Em Seu louvor também não fujo a baptizar filhos de casamentos cruzados, de mães solteiras ou amancebadas, pobrezinhas claro, que mal têm uns euritos logo dizem que é união de facto.

Custa-me é o sofisma desse carneiro de bispo, um unhas-de-fome, que o Bom Deus bem precisava de iluminar com lâmpadas de muitos watt. Com os recursos que derrete em tinta para o cabelo já eu punha o jacuzzi e dizia adeus às dores das hérnias que, quer acreditem ou não, me moem mais do que as cinco chagas de Cristo!


Lisboa, 2 de Abril de 2008


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