quinta-feira, 31 de março de 2011

Contito – Chá de boletas

Contito do tempo do meu Avô

50% ficção


Como nos outros anos, a trupe ia a banhos, a Sines, a muitos, muitos quilómetros de Pedrógão do Alentejo. Os sete meninos eram metidos no churrião e no outro dia estavam a brincar na areia.

Por estradas empedradas ou de terra batida, mas também por atalhos nos montados e caminhos entre as hortas, a monotonia da viagem só era quebrada pelas descomposturas da mãe e pelos solavancos. Quando alguém se queixava, a tia Consolação dizia baixinho que era das molas de azinho do churrião. Queria ela dizer que não tinha molas nenhumas, que era igual aos outros carros da casa, que carregavam as coisas do campo, estrume e alfaias ou trigo e pessoal da monda, o que calhasse.

Igual, igual não era, que tinha bancos corridos em vez dos simples taipais e era coberto por um toldo redondo. O que era mesmo igualzinho era a parelha de mulas que o puxava, que tanto era atrelada aos arados e ao trilho como levava a azeitona para o lagar.

Nas paragens para desentorpecer as pernas ou para dar de beber aos animais, os dois manos e as cinco meninas não paravam, sempre numa correria, cheios de curiosidade com tanta coisa que não viam todos os dias. Não era raro que no recomeço da viagem houvesse joelhos e mãos escalavradas, mas nada de choraminguice. Se a mãe não os calava logo, o pai levantava uma sobrancelha e era remédio santo, ficavam de beicinho, mas sossegados.


Ainda longe do destino, o robusto churrião não resistiu a um barranco traiçoeiro e começou a andar aos baldões. Os raios da roda esquerda tinham dado de si, o aro ficou lasso e era perigoso continuar.

Que é que se há-de fazer? onde haverá por aí um abegão? e foram devagarinho até ao Monte da Carrasqueira, cujo dono o pai conhecia de Brinches, onde tinha parentes chegados. Foram muito bem recebidos pela família, que mandou logo chamar o Mestre Xico Quarenta para vir depressa e trazer a ferramenta. E toca de matar e depenar galinhas para o jantar.

Foi uma refeição tardia, mas farta, e a reparação da roda prolongou-se noite adentro, pelo que pernoitaram no monte.

No outro dia, manhãzinha cedo, a família que lhes dera telha, deu-lhes também um lauto pequeno-almoço. Havia pão, leite e requeijão, mel, paio e marmelada e fartura de laranjas e peras, tudo coisas do monte. Pior foi o café, que na casa só se bebia mistura.

Toda a gente à mesa, o ambiente cerimonioso de quem só se vê lá de longe em longe, a mãe de olho na miudagem, não fossem fazer pulantices e o pai com um carão, para prevenir faltas de respeito para com os anfitriões.

Afinal, os miúdos comiam sem travessuras nem entorneiros e não implicavam uns com os outros. Os adultos, esses, falavam das searas, das festas de Serpa e dos amigos e conhecidos quando foi servido o café. O Antoninho, nem esperou pelo açúcar, mal o provou disse logo, numa voz que se podia ouvir em Porto Covo:

 Oh mãe, isto parece chá de boletas!!!

A dona da casa meteu o nariz chávena, como se não tivesse ouvido. O pai tossiu, engasgado, e levantou-se logo, com a desculpa de ir ver se o churrião já estava aparelhado. E a mãe ficou sem pinga de sangue, branca, branca, como se tivesse levado um coice de mula.

Só o senhor Pestana, o dono do monte, reagiu com presença de espírito e humor infantil. Olhou para o garoto, deu uma carcachada e disse-lhe:

Então o menino não gosta!? Olhe que quem bebe café de chicória nunca faz xixi na cama!


Apareceram sorrisos amarelos, olhares comprometidos e adeus muito obrigado. À cautela, no Monte da Carrasqueira nunca mais faltou, lá no fundo da despensa, uma lata de café, 100% café.





Manuel A. Madeira

Lisboa, 1 de Março de 2011

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